Tudo me parecia cinza, esparso e também estranho. E o mesmo acontecia com os dias, com as músicas, com a sua face iluminada em um filme noir clássico e impecável. Também as estrelas, o céu sufocante e infinito, o amor que nos aprisiona debaixo das principais constelações, anjos e Beethoven à parte.
Eu via tudo isso e tudo isso me parecia cinza, eu pensava, isso também está dentro de mim, enquanto eu caminho soturno pelos bares e avenidas, respiro, transbordo cambaleante pela superficialidade das coisas.

segunda-feira, dezembro 5

Entre Bukowski e Rodrigues

O rádio ainda ligado me dizia melodramático, às duas da manhã, em forma de canção “eu volto, volto para você”. E duas garrafas do pior whisky me juravam uma ressaca pela manhã. Mas eu não me importava, porque ainda me restavam cigarros no bolso de companhia. Seus passos de ponta de pé. Seus peitos pequenos que cabiam perfeitamente nas minhas mãos. Tua voz cínica abafada. Porra, porque você sussurra assim? Me grita. Seja aquele exagero. Eu sinto falta do teu corpo e da sua risada de música. Me conta aquelas histórias de criança, aqueles teus traumas eternos e como teu pai fodeu com todo o teu futuro. Sinto falta de trepar contigo e ver teus olhos mortos para o teto e de repente olhando dentro de mim. Você fazia as contagens regressivas para o fim do mundo. Tão controladora. Tão absurda. Você chorava deitada encima de mim e molhava as minhas costas com todos os teus medos baratos e profundos. Eu pagava por todos eles. A puta mais bonita da cidade. A mais triste. Quando tu não chorava eu não gostava do sexo.Tem que revirar por dentro, baby. Tem que acordar teus pesadelos. Tem que ser por inteiro. Por isso te penetrava fundo. Por isso segurava teu rosto e esperava pelo momento em que teus olhos finalmente ganhavam vida e me olhavam de novo o coração. Só você sabe que eu ainda sou capaz de sentir. Eu só deixo você me revirar também. Fumava um cigarro, contava estrelas e dizia “volta, volta para mim”. Você ligava o rádio, saía do apartamento e dizia “Volto, volto para você”. Eu não desligava o rádio nunca, que era para tu voltar. Nunca paguei por uma foda contigo. Acho que isso era amor.

4 comentários:

  1. Eu me pergunto como cabe tantos extremos dentro de uma pessoa só. Fico impressionada com você. E que continue desse jeito, sendo essa mistura revirada e que só entende quem sabe sentir. Que sua força e essência doce não se perca. Que você seja sempre você.

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  2. o estilo lembra o bukowski e lembra o andré! gosto.

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  3. Excelente, Aninha. Gostei dos paralelos feitos entre um escritor e outro, e digo mais, arrisco ver a sua ambiguidade com mais nitidez do que a "vulgaridade" de Bukowski. Muito bom, dona Ana.

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