Tudo me parecia cinza, esparso e também estranho. E o mesmo acontecia com os dias, com as músicas, com a sua face iluminada em um filme noir clássico e impecável. Também as estrelas, o céu sufocante e infinito, o amor que nos aprisiona debaixo das principais constelações, anjos e Beethoven à parte.
Eu via tudo isso e tudo isso me parecia cinza, eu pensava, isso também está dentro de mim, enquanto eu caminho soturno pelos bares e avenidas, respiro, transbordo cambaleante pela superficialidade das coisas.

segunda-feira, janeiro 7


Vês! Ninguém assistiu ao formidável enterro de tua última quimera.
Somente a ingratidão - esta pantera - foi tua companheira inseparável!

Toma um fósforo. Acende teu cigarro! O beijo, amigo, é a véspera do escarro, a mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga, apedreja essa mão vil que te afaga, escarra nessa boca que te beija!


sexta-feira, agosto 3

Lembra-te de teus amores. Lembra-te, que é tua vez

Hey baby, se você estivesse aqui agora, eu te mostraria em replays perversos como em uma comédia muda, preta no branco, um mundo irreconhecível. Um mundo do qual nunca iremos pertencer, eu suponho.
Algumas coisas permanecem as mesmas, eu quero dizer, o sol, o mar, um dia na praia à revelia de tudo. Ainda não acordo cedo e nem retorno telefonemas. São segredos meus que confesso à você como quem confessa que eu, possivelmente, nunca tomarei responsabilidades na vida e “tudo bem, estou bem assim.” Não quero ir à analises ou ficar curada das obsessões que me perseguem o dia todo. E por tabela, como quem derruba a cada semicerrar de olhos os blocos alinhados em um espiral de encruzilhadas: particularmente deleito-me na cama à base de calmantes e sou muito feliz assim, triste e banida da humanidade que me encanta. 
Continuo me afastando dos bancos, das filas, das pessoas que me assustam por nunca ter ouvido suas vozes ou suas histórias. Penso muitas vezes “São todos fantoches colocados por Deus quando saio nas ruas. Cada qual interpretando seus papéis diante da vida que apenas acontece ao meu lado.” Não correspondo a mesquinharia dos solitários como te pareço assim: nua e dissimulada. É que a vida desde cedo sempre me pareceu individualista por si só. 
As conversas já não me interessam, moun amour, as putas ainda são putas e os vagabundos como eu continuarão vagabundos. Fumando seus cigarros à beira de um quadro do céu, assinado por Renoir. Por outro lado, seu mapa astrológico pairando sobre seus cílios de vidente (errante) me transformaram por inteira.
Eu ardo, mas estou calma. Permaneço muda, estática, faminta sobretudo por coisas que ainda não descrevi ou interpretei. O mundo, como vinha lhe dizendo, eu não mais compreendo. Tomou proporções descomunais em línguas que eu ainda desconheço.
Depois da escola, do intervalo das classes, eu chorava querendo que me servisse esta sina de escrever. Depois disso, muitos outros livros, minha mãe se despedaçando pelo espelho do banheiro e logo depois o meu rosto que envelhecia ao seu lado absorvendo suas dores em forma de neuroses que me perseguiriam para sempre. Foi quando eu descobri que também sofria das mesmas dores universais. Outro fantoche de Deus, eu penso agora.
Por consequência ou desmazelo depois de conhecer você, não houve nenhum outro assunto no mundo sobre o qual eu desejasse escrever. Percebi também que nada soava tão bonito ou tão verdadeiro como quando eu detalhava o seu jeito de acender o cigarro ou o soco na minha cara quando eu insistia em questionar o meu talento. Ou como cantava alto, fazia piadas interessantes e inteligentes, como balançava despreocupado na rede estendida pela varanda. Não havia mais nada no mundo a não ser a varanda, a rede, a ilha que nos esconde entre sombras. Nada como o beijo trocado no escuro dos olhos fechados, mil estrelas enquanto forçava os olhos, tentando me segurar nas beiradas de meus sonhos nítidos.
Você abre a porta.
- Amor, entre o abrir e o fechar dessa porta eu espero o seu retorno. Enquanto isso, escrevo sobre você. E sobre tudo isso. 

(…)

domingo, julho 15


Mudei a máquina de escrever para o aposento ao lado onde posso ver-me no espelho enquanto escrevo. Tânia é como Irene. Espera cartas gordas. Mas existe outra Tânia, uma Tânia semelhante a uma grande semente, que espalha pólen por toda parte -- ou, digamos, um pouco de Tolstói, uma cena de estábulo na qual o feto é desenterrado. Tânia é uma febre também -- les voies urinaires, Café de la Liberté, Place des Vosges, gravatas brilhantes no Boulevard de Montparnasse, banheiros escuros, Porto Sec, cigarros Abdullah, sonata patética em adágio, amplificadores auditivos, sessões de anedotas, peitos castanho-avermelhados queimados, ligas pesadas, que horas são, faisões dourados recheados com castanhas, dedos de tafetá, crepúsculos vaporosos transformando-se em azinheiras, acromegalia, câncer e delírio, véus quentes, fichas de pôquer, tapetes de sangue e coxas macias. Tânia diz para que todos ouçam: 'Eu o amo!' E, enquanto Bóris se queima com uísque, ela diz: 'Sente-se aqui! Ó Bóris... Rússia... que farei? Estou estourando!'
 À noite, quando olho o cavanhaque de Bóris estendido sobre o travesseiro, fico histérico.
 Ó Tânia, onde estão agora aquela sua boceta quente, aquelas ligas gordas e pesadas, aquelas coxas macias e arredondadas? Em meu membro há um osso de quinze centímetros de comprimento. Tânia, alisarei todas as pregas de sua vulva, cheia de semente. Mandá-la-ei de volta para seu Sylvester com a barriga doendo e o útero virado. Seu Sylvester! Sim, ele sabe acender um fogo, mas eu sei inflamar uma vagina. Enfiarei pregos quentes em você, Tânia. Deixarei seus ovários incandescentes. Seu Sylvester agora está um pouco ciumento? Ele sente alguma coisa, não sente? Sente os remanescentes de meu grande membro. Deixei as margens um pouco mais largas. Alisei as pregas. Depois de mim, você pode receber garanhões, touros, carneiros, cisnes e São Bernardos. Pode enfiar pelo reto sapos, morcegos, lagartos. Você pode defecar arpejos ou amarrar uma cítara sobre o umbigo. Eu estou fodendo, Tânia, para que você fique fornicada. E se tem medo de ser fornicada em público, eu fornicarei privativamente. Arrancarei alguns pêlos de sua vulva e os grudarei no queixo de Bóris. Morderei seu clitóris e cuspirei moedas de dois francos..."

sábado, julho 7

Quando eu te contei sobre os segredos da juventude

(e o primeiro ou único amor a que temos direito)


"Como eu posso te dizer? É difícil. Tudo é sempre muito difícil pra mim. E pra piorar eu sou pessimista, perdi a fé nos dias, as músicas entram dentro de mim, me perfuram, eu não sei,   sinto nas veias toda a tristeza como um aviso prévio de toda a confusão que virá. Porque ela sempre virá, você sabia disso, meu amor? Você já sentiu isso? Não interessa se acordei bem, se respiro normalmente ou se tive um sonho perverso na noite anterior, não importa o calendário, o rádio desligado encima da geladeira ou a porta que eu esqueço de trancar. As coisas simplesmente acontecem muito depressa e eu não tenho forças, ou até tenho mais não quero mover um só palmo para impedir que tudo isso aconteça. Eu acho que no fundo, eu não passo de uma expectadora, sabe? Da vida, das relações, dos sentidos apurados, dos amores que eu deixei passar. Acho que eu não quero ser feliz. É isso."

"O que te acomete é a suprema falta das ilusões. O que pode ser explicado também por Sartre na página 53 daquele livro que te falei, em relações interpessoais do capítulo quatro: As essências. Ou então por Freud, minha querida, digo: leia Lacan. Você notará também  explicações convincentes a cerca dos teus traumas antigos. Como quando você apanhava quando criança e hoje gosta de apanhar na cama."

"Uma palavra pra você, querido, Niet-zsche."

"Tudo bem. E o café?"

"Ficou amargo. Não vale a pena."

"Porque você acordou hoje tão mal humorada?"

"Sei lá, mistura de tpm com finzinho de domingo. Eu fico assim mesmo."

"Você já decidiu o vestido?"

"Já."

"Que horas?"

"Oito. Você vai chegar a tempo?"

"Eu já te decepcionei alguma vez?"

"Várias vezes.

"Quando?"

"Quando você não adivinha o que eu penso. Ou quando você dorme primeiro e eu fico sozinha, fico com
medo."

"Não é minha culpa. Você, às vezes, pode ser muito injusta."

"Eu sou exigente com tudo, você sabe disso. A vida também me exige em tudo. E além disso... O amor tinha que ser capaz de ler mentes, você não acha?"

"Eu não sei. Acho que sim."

"Eu quero dizer, como uma sinalização em que você teria a certeza de que há qualquer conexão ou sentimento. É terrível todo esse acaso, todos esses amores irrelevantes-indiferentes. A vida é tão curta . Porque todo o perigo, toda a atenção em alerta se eu posso ser feliz desde ontem?"

"E como você reconheceria as pessoas certas se não se encontra-se antes com todas as pessoas erradas?"

"Isso é piegas demais pro meu humor prejudicado, Luíz. Fica para a biblía ou para o sermão de hoje à noite no casamento."

"Que horas mesmo?"

"Oito."

Na igreja decorada de salmão e branco, rosas amareladas, espelhos no chão e vitrais coloridos, eu não reconheço ninguém. Apenas a noiva que também é funcionária do hotel cinco estrelas em que eu trabalho e que usava pérolas todos os dias.

"Como ela se chama mesmo?"

"Catarina."

"E ele?"

"Não lembro. Talvez seja Ricardo."

"Você acha que demora?"

"Acho sim. Porque agora, a esta altura do campeonato, toda essa aversão à casamentos? Seus pais são separados?"

"Nenhum trauma dessa vez. Apenas acho entediante toda essa formalidade e expectativa. É como marcar a primeira vez de uma garota em um final de semana livre e encher a cama de flores para descobrir depois que ela ainda não tem seios formados. Eu não gosto disso. O que aconteceu com as histórias em que as pessoas fugiam para se casarem escondidos?"

"Tá falando de Las Vegas?"

"Tô falando de espontâneidade. O mundo não tem mais isso ou nunca teve."

  Catarina seria a única que dançaria sozinha no meio do salão, como a estrela mais bonita da noite. Vestiria branco, eu imaginei, e provavelmente um colar de pérolas. Carregava as flores no colo, caminhava devagar como no ensaio do dia anterior, eu pensei. O que era realmente estranho é que ela não sorria. Não olhava para os lados como em outros casamentos. Olhava o chão, as flores, os detalhes do vestido, as mãos. Foi nessa época que eu devo ter compreendido também  sobre compaixão. Por trás de todo ser humano fodido, mesquinho e maldoso havia uma história triste. Eu sentia pena por todos eles, inclusive por mim.
  Quando Catarina chegou ao altar não olhou para Ricardo ou Carlos, não me lembro o nome, mas o fato é que ela não sorriu hora alguma. E isso hnão passou despercebido.

"Ela vai vomitar?"

"Acho mais fácil ela sair correndo."

"Isso é terrível. Eu quero chorar por ela."

"Você não pode ser tão sensível assim."

"Eu sou sensitiva. É diferente. E além do mais, você vê todo esse silêncio eminente? Isso é assustador. Parece que não há como voltar atrás, como não ter opções depois de rezar a Deus e pedir para morrer. Eu quero dizer, depois disso você acha que não tem outro jeito e que você realmente vai morrer a qualquer momento."

"Você acha que eles podem nos escutar?"

"Acho que tem sempre alguém prestando atenção."

"Sabia que eles se conheceram no mesmo dia que a gente?"

"Um ano, então."

"Sim, sim."

"Como ele a pediu em casamento?"

"Acho que foi no restaurante prefirido dela, no dia do aniversário dele."

"No champagne?"

"Na sobremesa."

"Teve aplausos?" Dessa vez ela riu.

"Aposto que sim."

"Parece alguma cena de uma série norteamericana antiga."

"Talvez seja por isso mesmo."

"Meus irmãos, estamos aqui para selar a união magnífica deste homem apaixonado pela belíssima Catarina Helena. O casamento é a forma mais rápida e eficiente de se aproximar de Deus e rever todos os conceitos pregados por Cristo. O amor, depois de todo o sofrimento ainda é o mais verdadeiro dos sentimentos quando o homem simplesmente percebe que não pode ser alguém se não tiver uma mulher ao lado."

"Em Lucas, versículo quinze, Deus vem nos dizer mais uma vez sobre a necessidade humana em ter uma companhia em noites de turbulência. Você Catarina, é quem vai segurar a mão de seu homem quando ele estiver em noites de turbulência. E para tudo isso é necessário a paciência trabalhada por todos os dias de nossas vidas. A concessão por sua vez é a mais importante das causas em que temos que trabalhar, como a chama da paixão que nunca pode deixar-se apagar..."

"Sabe, ainda há beleza nisso tudo."

"Talvez, querido. Acho que no fim, eu apenas não gosto de dar o braço a torcer."

"Você está muito bonita, hoje."

"Hoje."

"Você acha que a eternidade acaba em algum lugar?"

"Tem que acabar, não é mesmo?

"Eu penso assim: em algum lugar, haverá sempre alguma barreira."

"Mas isso também pode ser superado e depois disso pode haver mais duas eternidades, depois outros
muros, outras paradas. A eternidade da eternidade."

"A eternidade da eternidade. Bonito."

"A eternidade, meus filhos, está apenas ao lado de Deus. Por isso na instituição que será consagrada agora, estarão todas as promessas declaradas perante todos os juízes do céu e da terra. Estará também todo o comprometimento e amor laçados. Não pode haver arrependimento no casamento, meus queridos filhos. O que Deus une, nenhum homem é capaz de separar."

"Você reparou que ela não tirou o véu?"

"Reparei."

"Acha que ela está sendo obrigada?"

"Ela pode estar grávida também."

"E o pai obrigou?"

"Ou a consciência, não é mesmo? Ela não teve mãe. Sabe bem a importância disso tudo para a saúde de uma
criança."

"Psicologia barata, Luís. Perdi minha mãe aos oito anos e nem por isso me casaria por medo de barriga."

"Você é ariana, é diferente. Não faria nada que tivesse "obrigação" no meio de uma frase."

"Ele disse sim. Você acha que ela vai dizer também?"

"Catarina Helena de França, você aceita este homem, como seu legítimo esposo, enfrente a toda a sua família e perante Deus nosso Senhor, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença por todos os dias de sua vida?"

"Aceito."

"Então pelo poder concedido a mim, eu vos declaro marido e mulher. Podem aplaudir os recém-casados."

A igreja toda se levantou em lágrimas e assobios. Eu reconheci a sonata que tocou enquanto os noivos viraram-se para a platéia e pareceram segurar as mãos pela primeira vez.
Não haveria festa porque ela tinha optado por um transatlântico pelo Mediterrâneo. Ela usava as mesmas pérolas que usava todos os dias no Grand Hotel, eu pude perceber quando ela passou ao meu lado. O véu continuava abaixado, as flores à tiracolo, os sapatos brancos que apareciam a cada vez que o vestido dançava para trás e ela usava branco. Branco, eu pensei, só ela pode estar de branco. Isso definitivamente é alguma coisa.
Na saída, havia balões vermelhos por todos os lados, nos para-brisas, no retrovisor, em galhos de arvóres.  Ela não segurava minha mão. Eu me recordo também que houve fogos de artifício e que nós dois assistimos na esquina da igreja, dentro do primeiro carro que eu comprei. Tinha banco de couro, custou umas oitocentas pratas e nós ouvíamos músicas pelo toca-fitas. Eu era metido em filosofia e acordos federais, você tinha o cabelo grande, ruivo e era ariana. Eu não sabia ler mentes, você não consultava horóscopo, não acreditava em coincidências e tinha medo do pai. Eu tinha vinte e poucos, você também. Naquela noite houve confeitos, vestidos longos, uma transa rápida depois do banho e depois outras muitas análises sobre cada falta humana e nossas angustias, que eu ainda arrisco dizer que são as mesmas.
Catarina se separou seis meses depois. Incompatibilidade de gênios, ela alegou para o juíz. E o casamento não tinha sido consumado. O marido chorava, chorava envergonhado pedindo um pouco mais de tempo.
Que a reconquistaria. Que cumpriria seu papel de homem.

"Mas eu não te amo mais."

"Nunca me amou?"

"Amei."

"E quando parou de me amar."

"Quando eu me tornei sua. Quando eu me tornei sua e nunca fui sua realmente. Eu fiquei vagando por aí. Não era de ninguém. Eu não era ninguém depois disso."

Você me deixou quase na mesma época pelos quases mesmos motivos.

"A gente não lê a mente um do outro. Você sabe. E tem Paris, tem a Áustria, eu nunca vi um Munch de
perto."

"Qual vai ser o primeiro quadro?"

"O beijo."

"Por causa do azul?"

"Também. Mas ela não tem rosto. Já percebeu?"

"Não. Mas agora eu posso ver."

"O que você pode ver?"

"Tudo. Inclusive você."

"Às vezes eu esqueço que você também escreve."

"Como você pode esquecer isso?"

"Do mesmo jeito que você também esquece. Como agora eu finjo que esqueço. Eu me esforço muito em fingir que eu não sei. Mas eu sei. Eu sei durante quase todo o tempo. "
-

"Continuo bonita?"

"Mais do que antes."

"Isso é bom?"

"Acho que não para mim."

"Você me deseja sorte?"

"Sempre?"

"Como era aquela frase mesmo, querido?"

"A eternidade da eternidade."

"Isso. Ainda continua bonito."

"Algumas coisas sempre serão bonitas."

"Como eu?"

"Como você e suas sardas quando o sol vermelho reflete em seu rosto." Ela caminhou até a porta.

"Luís, eu queria ser Catarina também. Ela não tem rosto. Mas no altar, ela disse sim."

Fechou a porta. Eu fiquei pelo sofá lendo Miller, trópico de câncer, eu pensei em Março, quase perto de Abril, é áries. Duas horas depois um avião cortou o teto da minha casa.

domingo, junho 24

Nossas angústias de Hollywood

  É  imprescindível que você saiba e não se esqueça nunca que eu não fui sempre assim: cínica, sarcástiga e egoísta. Neurótica aconteceu no “entre”, durante tudo que eu era e tudo que eu me tornei.

  A questão Bárbara, é que às vezes o papel não é suficiente. Eu sei que eu sou um pouco exigente com as pessoas, com a verdade, com a minha patologia, com o meu amor que é meio controlador e cheio de rédeas. Eu sei também que eu sou megalomaníaca e mesquinha, pensando sempre em mim, no meu escudo, nas minhas vontades cheias de quero-quero e bate-o-pé.

   Eu confesso que sou exigente com tudo e escrever não é uma excessão. Também não funciona, também não tira o nó da garganta, também não cura a vontade de entrega, de dormir um sono eterno ou me atirar do vigésimo quinto andar só porque o filme é de drama e hoje é domingo à noite. Não me entenda mal, eu fico bem sozinha, o problema é que eu ainda não aprendi a lidar com a solidão. Essas coisas triviais e que nunca se tornam clichês, a gente enlouquece com coisas tão bestas e simples. Eu continuo muito humana.

  O que eu quero dizer é que nem os papéis, nem os braços, nem mesmo as conexões e a compreensão, nada, nunca vai ser o suficiente. Inclusive eu, você e o amor em si. Mesmo que seja assim: intenso e quente, feito seus cigarros doces Hollywood.

  A gente chora dentro de um abraço, às oito da manhã e finge que sorri, esquece de tudo, tem outros papos. Você até paquera alguém em um bar decadente perto da faculdade. E eu fico assim, só de longe, me sentindo muito impotente e cheia de medo.

  Eu sei que eu sou medrosa pra caralho e exagero quase sempre, mas é que às vezes Bárbara, assistir o filme repetidamente dói. Dói como da primeira vez.

É como eu te disse, ainda nesta tarde, nas nossas conversas pelas beirada do superficial, quando na verdade somos mais profundos do que supomos: eu só posso assistir.

  A vida é assim mesmo, meio boca livre, meio trágica, uma putaria sem fim de esconde-esconde, dramas familiares e preconceitos hereditários. Porque no fim, nem todo mundo é capaz de amar. E você sabe, teve esse puto azar de nascer em um janeiro de capricórnio, de se entregar, de não ter minhas rédeas, de se jogar de penhascos, de supostamente ter essa obrigação em conquistar tudo e todos. E de repente te negam amor, te viram as costas, existem traições ainda. E eu só consigo pensar, que medo, que medo filho-da-puta por você.

  E novamente essa solidão que me empurraram e não sei lidar. Também não sei viver. É preciso dicionário, mais vinte anos, escola-para-vida, traduções e muita compreensão. Em contrapartida nunca fui boa em aceitar esses sentimentos. Quero outra coisa. Isso também não serve. Também não me acalma. Não conforta. Não sei ser leve e não quero esquecer. Entendeu? Eu não sei andar sem olhar para trás.

  Seu amor, eu imagino, deve morar na zona sul da capital. E você tem que enganar a vida pelas esquinas de um bar ou de uma festa de fim de ano. Só porque a história tem seus horários, só porque a merda da mamãe deve ser ariana e controladora como eu. Só porque o mundo ainda não está preparado para a sua intensidade. Ao mesmo tempo eu não consigo entender. Parece que só é real enquanto dói. Parece que só vale a pena se alguém chegar perto o suficiente para me partir em dois.

  Minha querida amiga, continuo amadora em tudo e as palavras ainda me parecem pequenas demais. Pequenas perto de toda aquela energia e proteção que você merecia - merece - e que eu quero te dar. A minha única sacada na vida foi ter entendido o que era necessário para amar. Também não esqueço do vinho, dos cigarros, da solidão que foi fundamental para aceitar as esperas. Em contrapartida, cortei muita gente da minha vida. E quando eu quero, hoje eu arrumo as malas.

  Porque na verdade nós não passamos de vítimas. Nós somos vítimas de nossos próprios sonhos. E não há nada que possamos fazer. Continuamos pequenos, insignificantes diante de tantas escolhas, tantas possibilidades, tanta gente interessante e melhor do que nós duas.

  É como eu me encontro: de onde é que nós tiramos força e conseguimos escolher os caminhos, a enfrentar os pais, a dizer adeus? Quando e com que idade eu ou você pegamos o lápis e nos decidimos pelo caminho de escrever que não tem volta, cuspimos diante de tanta hipocrisia, tanta crueldade, tanta caretice, meu Deus. Como é que a gente foge disso tudo e encontra Paris no meio dessa cidade caótica de sol&chuva e que tem mais de um milhão de habitantes e ainda assim, todo mundo se conhece?

  Como é que a gente se esconde? Como é que a gente chora sem ter medo de ser interrogado? Eu também não sei. Meu peito parece ficar azul nesses momentos de iluminação. Eu assisto passiva essas dores de parto, de ausências, de amores predestinados e de gente horrível que não tem motivo nenhum para se lamentar. Não aprenderam a chorar na vida, no mínimo.

  Aí eu debocho. Tiro sarro com juventude burra, garotas iludidas, Caio Fernando Abreu e corações perdidos pelo universo. Apesar de tudo compreendo muito mais o sofrimento e a compaixão. E o nosso papel em sofrer e esperar. Ao mesmo tempo, me sinto mais amarga. Mais esperta. Mais conectada com a mulher que um dia eu devo ser.

  Eu penso: Meu Deus, já sofri tudo que deveria sofrer para me tornar enfim, uma mulher madura e experiente? E eu quase escuto o ruído das asas de um pássaro. Ou até mesmo vejo um, descendo em queda livre pelo céu quadrado na minha janela. É o que tritura meus ossos e me faz gemer de dor mais uma vez: enquanto o meu céu for o quadrado da minha janela, ainda há pelo que sofrer.

  E sei: não sou livre, meu Deus. Eu nunca serei.

  Só sei que um dia a gente se encontra, descobre, compreende a vida. Ou encontra as chaves. Repito que eu não sei. Mas você, eu desconfio que acaba se jogando do meu vigésimo quinto andar: não porque é domingo, o filme é triste ou você não suporta a dor.

 Eu suspeito que você já nasceu sabendo voar.