Tudo me parecia cinza, esparso e também estranho. E o mesmo acontecia com os dias, com as músicas, com a sua face iluminada em um filme noir clássico e impecável. Também as estrelas, o céu sufocante e infinito, o amor que nos aprisiona debaixo das principais constelações, anjos e Beethoven à parte.
Eu via tudo isso e tudo isso me parecia cinza, eu pensava, isso também está dentro de mim, enquanto eu caminho soturno pelos bares e avenidas, respiro, transbordo cambaleante pela superficialidade das coisas.

sábado, dezembro 10

Primeiro Capítulo

Era verão de 74. Chicago estava lotada de saias altas, compridas, tiaras de flores improvisadas, paz, amor e muita revolução. Louise ia arrancando a grama com as mãos, sentada daquele jeito pateta de pernas cruzadas e um bico infantil. Seu oclinhos rosa, redondo, comprado em uma loja de conveniências na autoestrada, saída de Louisiana, estava na promoção, dez dólares. Seu cabelo escorrido preto, pesado ia até a cintura e às vezes, quando o vento assobiava por entre os fios que escondiam segredos de outras décadas, eu sentia o seu cheiro de maçã. Doce demais, talvez.

Cantávamos Beatles. Tínhamos coleções de discos, de ideologias, de juventude eterna: futuro da nação. Não queríamos nada e talvez por isso, esperávamos tudo. Erámos o próprio clichê. Rolling Stones na estrada. Uma van. Porrada de maconha que curaria o mundo inteiro de qualquer doença. Abria mentes mesmo. Víamos o futuro e andávamos em Saturno, mó viagem. Louise se debruçava na janela do carro, tentava contar as faixas amarelas que voavam atrás de nós. Nada ficava. Passávamos serenos e quebrávamos a linha do tempo tentando ganhar sempre um segundo à frente, enganando tudo que prometia nos acorrentar. Viagem louca à vera. Não tinhamos mapa, nem diário de bordo.

Anne ia deitada atrás tirando a tintura branca da lataria velha da nossa van usada, anos 50, original da banda the platters, eles haviam nos prometido. Foi Joan que nos deu a dica e arrumou toda a papelada, vendido no estacionamento de um feirão, deram um desconto beleza no carro. Mesada de papai de cinco meses. À vista.

Não telefonava para casa havia duas semanas. Nossos pais estavam envergonhados, doentes, desacreditados de nossas escolhas on the road. Para os vizinhos estávamos de férias na casa de nossos tios-avós, Tennessee, e não havia data de voltar. Estávamos trabalhando e aprendendo os valores da vida. Fachada pura, vergonha dos filhinhos que eram chamados de “os rebeldes sem bandeira” ou simplismente de vagabundos-drogados-sem futuro. Talvez fôssemos mesmo tudo isso.

Louise jogava folhas para o ar e esperava que uma saísse voando. Seria um sinal. Se uma voasse ela seria feliz. Se caísse ela nunca encontraria seu verdadeiro amor. Enquanto uma não voasse ela não parava de brincar com o destino. Não aceitava sua sina. De vez em quando ela deitava no meu peito e me dava um beijo frio no ombro. Eu mal me movia nesses instantes. Ela era maçã demais. Anne que não suportava qualquer pressentimento de solidão maior, deitava também do meu outro lado e encostava a lingua no meu queixo, querendo atenção. Era a garota mais triste que eu já havia visto. Louise era do tipo que sorria até com o corpo. Andava dançando. Anne sorria chorando, com os olhos. Dava vontade de chorar junto com ela. Evitava ficar por perto porque ela era pesada e me afundava junto.

Deitados de costas para o mundo, a grama úmida, o céu que nos ignorava, cumpríamos nossos papéis. O tempo que marcava nossa história. Nos amavámos da maneira mais pura e verdadeira. Desejávamos coisas grandes como a paz, utopias como a igualdade. Mas o grande sonho mesmo era pertencer, sabe? Perder aquela vontade de sair pela estrada. Algo que nos fizesse parar. Qualquer pessoa ou ponte que tivesse a força necessária para nos reter. Eramos liberdade e queríamos também algumas prisões. Éramos futuro demais para que alguém nos entendesse. Angústia eterna.

Dávamos carona o tempo todo. Não podíamos ver alguma possibilidade de história que parávamos e alguém embarcava no capítulo seguinte. Era risco. Eles podiam estragar todo o script. Mas a gente se enganava, porque a verdade mesmo é que não tínhamos controle de porra nenhuma. Nenhuma força. Nenhum grito alto o bastante para que nos ouvissem.

- Porra e o que vocês conseguiram mudar até agora com todos esses sonhos aí?
- Nada.

Seríamos eternamente fotos em sépia, modelos antigos de sonhos infantis nunca realizados. Tudo bonito no papel. Desde que arrumei as malas e passei na casa de Louise - e Anne veio de quebra para completar nosso amor - discutíamos, brigávamos por causas que não eram nossas, queríamos demais e não havíamos mudado nada daquela merda de mundo. E ainda assim valia a pena. Ainda assim pegávamos a próxima rota em direção ao Missouri ou Texas, quem sabe. Não queríamos fazer sentido. Era aí que morava nosso segredo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário