Tudo me parecia cinza, esparso e também estranho. E o mesmo acontecia com os dias, com as músicas, com a sua face iluminada em um filme noir clássico e impecável. Também as estrelas, o céu sufocante e infinito, o amor que nos aprisiona debaixo das principais constelações, anjos e Beethoven à parte.
Eu via tudo isso e tudo isso me parecia cinza, eu pensava, isso também está dentro de mim, enquanto eu caminho soturno pelos bares e avenidas, respiro, transbordo cambaleante pela superficialidade das coisas.

terça-feira, novembro 8

Fecha nosso livro se você não sabe amar

Eu, sabendo da tua garganta arranhando, do teu nariz prejudicado, da tua voz que sairia embargada, te pedia provocando: “Amor, canta para mim aqueles versos. Faz doer no peito a nossa poesia de vida.”

Você afastava um pouco a cabeça e sorria fechando um pouco o olho esquerdo. Me dava um beijo com gosto de ferro e tabaco, ficava em pé na cama, com o livro de Bandeira, aberto entre as mãos. A garganta sangrava:

- Eu faço versos como quem chora, de desalento, de desencanto. Fecha o meu livro, se por agora, não tens motivo nenhum de pranto.

Eu dizia: baby, temos motivo de sobra para chorar por três vidas inteiras. Arranha mais.

Você continuava chorando:
- Meu verso é sangue. Volúpia ardente, tristeza esparsa, remorso vão. Dói-me nas veias. Amargo e quente, cai, gota a gota, do coração. E nestes versos de angústia rouca, assim dos lábios a vida corre, deixando um acre sabor na boca.

Eu continuei: recitamos versos como quem morre.

Você encostava a cabeça no meu peito de descanso. Não dizia mais nada que a garganta era impossível.

Tentava imaginar teu esforço em me soprar poesia, tentava imaginar a faca, a lâmina quente que descia pendente e subia fechando a voz. Você doente, gripado, sujo, acabado, cantava por puro capricho meu.

Contava histórias de Bandeira e a cada verso eu só entendia “eu te amo, eu te amo, querida”.

Temos motivos e amor de sobra para amar por três vidas inteiras, baby.

Fazemos música como quem ama.

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