Tudo me parecia cinza, esparso e também estranho. E o mesmo acontecia com os dias, com as músicas, com a sua face iluminada em um filme noir clássico e impecável. Também as estrelas, o céu sufocante e infinito, o amor que nos aprisiona debaixo das principais constelações, anjos e Beethoven à parte.
Eu via tudo isso e tudo isso me parecia cinza, eu pensava, isso também está dentro de mim, enquanto eu caminho soturno pelos bares e avenidas, respiro, transbordo cambaleante pela superficialidade das coisas.

terça-feira, novembro 8

As trincheiras debaixo da cama

A gente se escondia debaixo da cama e contava até um mil. Andávamos encolhidos pelo chão, passando pelas trincheiras com olhos desconfiados e esperando as próximas bombas. Você sorria tanto. Nós sabíamos as falas de cor. De cor, acredita? Com quem mais eu poderia conversar sobre Oriente Médio, amor, putaria, cigarro, rock and roll e filhos? Íamos limpando a madeira com a roupa, beijando o chão como a areia de uma praia ilhada. Nossa salvação em plena Botafogo, às cinco horas da tarde. O céu rosa indicava todas as hemorragias, todo o sangue derramado pelo mundo, todas as mortes que o céu continha como almas.

Mas a gente se escondia. Nada de televisão ou coisa do tipo. Tecnologia era a nossa maior inimiga. Não dá pra fugir direito com essa porra de internet e celular. Não tem mais mistério do outro lado do planeta. Não posso fingir que, agora, caiu um meteoro na China. A instantaneidade, os fatos, a notícia antes de ser notícia, a certeza incontestável. Não dá pra inventar mais. Um saco toda essa burocracia e caretice.

- Amor, fecha as cortinas que eles nos observam de perto.

- Estão fechadas amor, estão fechadas.

- Não gosto, não gosto disso de poder tocar o mundo tão facilmente assim. Vai que você encontra sua alma gêmea em Buenos Aires ou na Irlanda?

- Minha alma gêmea é você, meu bem.

- Eu sei, eu sei. Mas vai que encontra? Não dá pra confiar. É muito perigo, GPS, esquadrão bomba, aeroporto, alfândega, tarifas, identidade, foto três por quatro, banco de digitais. Uma merda.

- Eu te protejo, baby. A gente tá seguro. Vivemos nos anos trinta, imune a tudo. Eu protejo a gente, amor. Estamos salvos debaixo da nossa cama.

Ele apertava minha mão forte nessas horas e eu perdia o medo. Eu sorria muito também, que não é todo dia que a gente tem o amor ao lado.

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