Tudo me parecia cinza, esparso e também estranho. E o mesmo acontecia com os dias, com as músicas, com a sua face iluminada em um filme noir clássico e impecável. Também as estrelas, o céu sufocante e infinito, o amor que nos aprisiona debaixo das principais constelações, anjos e Beethoven à parte.
Eu via tudo isso e tudo isso me parecia cinza, eu pensava, isso também está dentro de mim, enquanto eu caminho soturno pelos bares e avenidas, respiro, transbordo cambaleante pela superficialidade das coisas.

segunda-feira, junho 4

No centro do fim do mundo, na praça Roosevelt

Primeiro: 

Nós dois numa banheira, na bancada da janela de cocóras no assoalho de madeira, você nua e crua, eu purificado. Seu cabelo em minha boca, sua nuca no meu peito, sua bunda e seus seios, toda a minha devoção em seu pescoço, minha barriga enrolada em seus cabelos.

Rolling Stones por toda a casa. Discos de ouro, discos quebrados, discos-voadores e satélites.

Você, nua e linda se pintando de vermelho,  no tempo que marca a nossa história. 1980 por todos os calendários e constatações, o mar do tamanho da minha janela. 

Descemos as escadas contando os números pares, as lajotas de pedra e granito. A areia como estrelas-do-mar se misturando com nossos dedos. E toda a visão panôramica do infinito, do pós-oceano, dos vinte anos que se passaram sem você.

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Estive por Paris, por Mônaco em uma madrugada virada-de-ano. Vi fogos de artifícios, champanhe, explosões, estrelas e noz moscada. Vi também sua foto pendurada na parede. Os cabelos vermelhos, a pinta indecente no canto -segredo - da boca, um pouco antes da curva que lambe o meu rosto e o cheiro é de sal.

Sento na rede de tramas azuis. Azul-anil, azul-maravilha, azul-escuro e flores por todos os lados. 

A coca é diet, as batatas chips ainda no centro da mesa de vidro. E todo o seu cheiro pela casa. Seus cabelos dissimulados varrendo em ondas todas as paredes da casa. E as memórias de como era foder você no escritório, no sofá da sala, na rede de tramas azuis.

Mais ainda em Paris, no sonho louco de 1930, de circo de aberrações, no centro da luz do mundo, no topo da Torre Eiffel: eu desejava abssinto, Picasso, Modigliani e prostitutas nas esquinas de Montmartre.

Mas era virada de século, existem máquinas e aviões. Ainda há mendigos, prostitutas, cabarés, máquinas de escrever e gente solitária. No metrô, a luz verde em neon, aumentou a minha melancolia. Me senti da mesma cor, verde, azul também. Fase azul de Picasso ou a luz nos olhos de Jeanne. 

O cigarro apaga. Eu insisto em acender outro. Ainda bebo muito uisque, trepo pensando em você e cheiro uma carreira pela noite.

Nunca desejei nada, além de você.

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Depois: 

Ainda estou naquela fase de querer ser conhecido. Ainda desejo a glória, todas aquelas explosões solares e as promessas que fiz quando criança. 

Acendo incensos coloridos, velas, improviso rezas e proteções. Peço tanto e por tanto tempo toda essa atenção que me faltou. As batidinhas nos ombros também são fundamentais, os colares, os santos, os mantras e todos os chakras alinhados. Herança de toda a Índia que já foi nossa.

Permaneço carente, o seu bicho em extinção, uma criança eterna no seu colo de mãe protetora. Ainda tenho quinze anos, meto rápido, gozo rápido, vejo desenhos animados e futebol de salão. A vontade devastadora em pensamentos: uma passagem de trem cortando a porra do estados unidos. Uma ponta a outra. Piteiras e fumaças. Os sinos que me acompanharam durante toda a vida. 

Morei na Augusta, por lá eu conheci a Rita, a negra mulata do samba, a Vivi gostosinha da rua dois, a Neuza branquinha com carinha de santa, a Clara maldosa, baixinha, com carinha de França. Madamoiselle, eu dizia, e Madamoiselle era só o que sabia dizer. E é estranho falar desse tempo, de todas as mulheres que não eram você, de toda a confusão e carros vermelhos, sinais de trânsito, guardas de trânsito, as fachadas e propagandas, a missa e o coral da igreja, as escolas e crianças saltitantes pelo asfalto. Toda a vida que continuava independente da sua presença e toda a sua insignificância diante uma cidade que não parava nunca, que os postes nunca ficavam desligados, mais que era imprescíndivel para a minha normalidade diária. A vida que eu conhecia era a que existia com você. 

Depois foram outras vidas. Nada do planeta Terra ou essa constelação. Tudo é alienígena e inconcebível. A começar pelos cinemas. Um lixo. Todo o comércio e lucratividade, toda a sujeira das latrinas na porra da casa de Fellini e Robert De Niro. 

Já não existe James Dean e westerns decentes.

Já não se escutam as óperas de Wagner. Eu pensava, esse mundo tá fodido. Fo-di-do.
Eu tinha voltado enfim, para casa.

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