Tudo me parecia cinza, esparso e também estranho. E o mesmo acontecia com os dias, com as músicas, com a sua face iluminada em um filme noir clássico e impecável. Também as estrelas, o céu sufocante e infinito, o amor que nos aprisiona debaixo das principais constelações, anjos e Beethoven à parte.
Eu via tudo isso e tudo isso me parecia cinza, eu pensava, isso também está dentro de mim, enquanto eu caminho soturno pelos bares e avenidas, respiro, transbordo cambaleante pela superficialidade das coisas.

domingo, junho 24

Entre Bukowski e Rodrigues

 O rádio ainda ligado me dizia melodramático, às duas da manhã: “eu volto, volto para você”. E duas garrafas do pior uísque me juravam uma ressaca pela manhã. Mas eu não me sentia mal, ainda haviam cinco cigarros no bolso e a barba por fazer. E é engraçado porque o jornal atirado enfrente ao cabideiro, aberto na página dois dos classificados, com círculos em canetinhas guaxes e neons, é sempre do que eu mais me lembro.
 Na mesinha, um abajur classudo iluminava a madeira branca, o bico do tapete que era creme e o copo de água ao lado. Um tom baixo talvez em sépia me remetia coisas como um bar exclusivo e discreto na zona sul da capital, onde banqueiros, executivos, magnatas, sócios majoritários, milionários falidos e falsetes podiam compartilhar suas misérias e pecados silenciosamente ao som baixo do blues.
 Nessa mesma cena há um cantor no tablado corrido, de gravata, terno preto e paletó. Um copo também, remexido a cada dois minutos em companhia do microfone. Garçons que especulavam em círculos pelo salão esperando pelo braço que lhe fariam abaixar as cabeças e depois uma pequena caminhada, seguido prontamente de uma frase côrtes, algo como “Deseja algo, senhor?” e então “Sim, uma vodca com suco de laranja.” Ou talvez “Não, nada. Já não quero mais nada.” E o meu caso era sempre o primeiro quando o copo nada mais fazia do que dançar junto comigo o que eu não podia chorar com os outros. E também por isso, talvez, eu não me permitia sair antes de esvaziar dois litros e meio à minha frente.
 E eu também me lembro do saxofone, de festas de gala, vestidos bordados em pedraria e sedas esvoaçantes com cheiro de jasmins, de puteiros cinco estrelas em hotéis luxuosos no centro da cidade ou ainda sonhos mirabolantes de adolescentes quando descobrem os seios de uma mulher. Logo depois eu vejo as horas, são seis e meia da tarde e ainda há sol lá fora, eu confirmo entre as cortinas. Sua bunda descoberta desenhando pelo lençol branco de cetim, o seu corpo deslumbrante. Aquelas tuas malditas curvas de um autódromo bem cuidado que me emocionavam sempre pela tarde, depois de uma foda gostosa contigo quando dormíamos sem lembrarmos sequer de nossos nomes. Esses eram os momentos em que eu me tornava mais uma vez, um ninguém. Um filho-da-puta rancoroso e mesquinho que eu esquecia pelas gavetas ou entre as suas coxas, eu não sei.  Mas o fato primordial era que esses dias eram sábados quinzenais quando eu ao invés de seguir reto pela Paranaíba, contornava a Praça da Morte e descia pela Tocantins. Estacionava, abaixava o vidro, te jogava um beijinho, você do outro lado da rua dava tchau para as amigas, descia a calçada e encostava na porta do carro. Você dizia “Pensei que não vinha hoje.” E eu digo algo como “Eu não me esqueceria de você, meu bem.”  Depois você contornava o carro por trás, enquanto me olhava pelo canto dos olhos pelo retrovisor lateral, trocado há dois dias. Abria a porta do carro, escorregava pelo banco e me mostrava a meia calça preta de renda que ela havia comprado no dia. Dois beijos na boca, um suspiro longo e a primeira marcha engatada.

- Diz meu nome, Carlos?

- Porquê sempre isso?

- Eu não sei. É que meu nome fica mais bonito na sua boca. Você fala de um jeito diferente, sabe? Não é igual a nada no mundo.

    E antes Carlos Gardel em fita cassete, um boquete no sinal vermelho saída da cidade, um jantar no restaurante do posto de gasolina. Eu comia costeletas de porco malpassadas e um vinho tinto. Ela comia saladas caesars e muitas, muitas garrafinhas de água com gás, importadas da Europa. Um cheque especial na saída, um comprimento ao maitre conhecido e então a estrada, a sensação de viagem distante que nos impressionava a cada quilômetro.
 Na recepção haviam muitas flores, lustres e tapetes indianos, quadros todos em tons de vermelho que me davam aquela sensação de leste europeu e sacanagem.

- Qual quarto, senhor? E então ela respondia por mim.

- 501

    Ela sempre escolhia os quartos, essa era a verdade. Ora por despeito por seu sexo frágil ora uma sequência aleatória e totalmente ambiciosa. “É simples, eu quero estar em todos os lugares.” Ela me explicava enquanto abria suas cartas na mesa de poker que fica no centro da suíte.

- Uma carta, Rodrigues.

- Você sabe que não gosto disso.

- Então faça por mim.

- A Torre.

- Isso não é bom. Isso significa um relacionamento tumultuado, caminhando para a ruptura. O consulente esta se sabotando para não se envolver emocionalmente, fugindo de qualquer tipo de compromisso que para ele é uma prisão.

- Que grande bobagem, Carmem, isso não é nada mais que uma trapaça.

- Você joga dados, eu jogo cartas. O que há de tão diferente nisso?

- Muitas coisas.

- Eu não vejo nenhuma.

(Pausa)

- Você ainda escreve?

- Claro. Escrever continua sendo a minha maior vingança, Carlos. Eu apenas sou sutil.

    E isso era o suficiente para eu me calar, porque a realidade é que ela sempre fora mais inteligente do que eu sempre supus. Seja por ignorância ou preconceitos que só morreriam junto comigo. Eu pensava, há certos preconceitos fundamentais para a alma de um homem. O mundo também exigia que eu fosse um filho da puta.
 Mais tarde no canal de esportes e CNN, você saía de sutiã e uma calcinha de renda preta, abaixava as luzes do quarto, eu ligava a do abajur. O rádio na cama, ficava no blues. 180 FM, na companhia das madrugadas, rodava Frank Sinatra, Carlos Gardel e Elvis Presley. As cortinas com blecautes que eram acionadas por um controle remoto. Eu via apenas seu corpo pelo espelho e o reflexo da imitação de um Modigliani na parede de trás.

- Eu queria ser um blu-e.

 - Queria ser uma música ou uma cor? - eu perguntei de um jeito esnobe, rindo da sua dificuldade quando tentava explicar qualquer coisa sobre si mesma.

- Dá no mesmo, Carlos, dá no mesmo.

 E então seus passos de ponta de pé. Seus peitos pequenos que se escondiam dentro das minhas mãos. A sua perna de repente cheia de vida me sufocando pelo corpo. A sacanagem sussurrada ao pé do ouvido e a sua voz cínica, abafada. A boca molhada pelo meu rosto e o seu cabelo como uma leoa faminta de amor. Meu pau duro em suas costas, seus olhos fechados, insones, escondendo a dor. Nunca soube se eu gostava de você ou da sua dor infinita que eu queria que fosse minha. Ou pelo menos repartida. Partida.
 De repente você ia morrendo, ficava passiva feito um bicho definhando de fome, eu metia fundo, você gemia baixo. Depois deitava, chorava encima das minhas costas, me molhando com todos os teus medos baratos e profundos. Você nunca seria minha e eu nunca seria seu: essa era a única certeza clara e concreta. Dois escravos da solidão devastadora. A puta mais bonita da cidade. A mais triste também. A que sabia etiqueta, se interessava por concertos e música clássica. Que pedia saladas de escargots e não bebia vinho, mas sim vodca.
 Mas eu confesso, confesso que quando ela não chorava eu não gostava do sexo, de repente não gostava mais daquela garota. Eu socava a bancada da pia de granito, eu pensava, porra, porque você fala baixo assim? Eu preciso que você grite junto comigo. Que seja aquele exagero. Preciso que depois você me conte, entre risadas, aquelas histórias de criança quando você ainda era inocente ou então aqueles teus traumas eternos e de como o seu pai fodeu com todo o seu futuro.
 Sinto falta de trepar contigo e ver teus olhos mortos de repente olhando o teto e então seus olhos petrificados, olhando dentro de mim. Entre as contagens regressivas para o fim do mundo e as cartas de tarot cigano, eu me divertia com você. Eu então te penetrava mais fundo, por isso também segurava seu rosto e lhe agarrava o cabelo. Estávamos entre baladas e sábados quinzenais fingindo que podíamos pertencer por alguns instantes.
 Só você sabe que eu ainda sou capaz de sentir, eu pensava. Eu só deixo você me revirar também.
 Eu fumava um cigarro. Você fingia que dormia. O rádio melodramático, ainda me parecia dizer “Eu volto, volto para você.”
 Então eu saía do apartamento, fechava a porta com cuidado, descia pelas escadas, deixava o seu almoço e o táxi pago.
 Eu não te veria nunca mais depois desse dia. O rádio, eu lembro que deixei ligado. O abajur também. Das luzes eu não me lembro mais, parecia sempre noite com aquelas cortinas fechadas.
 Anos mais tarde, eu estava em Bancoc ou talvez na Espanha, recebi um fax contando que Carmem estava morta e eu era a única pessoa relacionado a ela na lista de emergência. Tinha morrido em um acidente de carro, na avenida Atlântica, esquina da minha casa, por uma complicação no pulmão esquerdo. Os cigarros, eu pensei, ela tinha cheiro de cigarro.

 Nunca paguei por uma foda com Carmem. Acho que isso e pelo menos isso, eu poderia chamar de amor. E nunca poderia duvidar.

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