Tudo me parecia cinza, esparso e também estranho. E o mesmo acontecia com os dias, com as músicas, com a sua face iluminada em um filme noir clássico e impecável. Também as estrelas, o céu sufocante e infinito, o amor que nos aprisiona debaixo das principais constelações, anjos e Beethoven à parte.
Eu via tudo isso e tudo isso me parecia cinza, eu pensava, isso também está dentro de mim, enquanto eu caminho soturno pelos bares e avenidas, respiro, transbordo cambaleante pela superficialidade das coisas.

sábado, fevereiro 4

Carta 4


Amor,

De alguma forma desgastante e insuportável você estava certa. Você sempre estava certa. Seu modo profético de adivinhar o que eu estava pensando e suas necessidade de dizer tudo antes que eu me manifestasse. Como se estivesse à frente de tudo. E você sempre estava.

Precisava chegar antes, adivinhar futuros, prever apocalipses. Seu medo de ser surpreendida era tão grande amor, que você se desgastava tentando analisar cada movimento do destino. As cartas que você jogava e os signos que acompanhava a cada estação da lua. Estar sempre um passo a frente para não ser empurrada do décimo andar. Porque se jogar é mais bonito do que cair.

Você vivia cansada, eu percebia. Era tão difícil para você. Você sempre com medo, encolhida entre as pernas. E eu queria - e falhei tantas vezes - te fazer enxergar que não haveriam terremotos. Não essa noite, eu prometo.

Que tudo bem tropeçar na calçada, não precisa voltar e bater o pé três vezes. E que o peso do mundo tem o mesmo peso dos ombros.

Mas você era viciada em tudo isso também. Você que não suportava a rotina, os cumprimentos, as conversas ao telefone, as contas de luz, as escadas rolantes, os servidores públicos e os dias de calor.

Rolava por entre as cortinas, fumava dois cigarros e se apoiava na parede enquanto cantava músicas que ainda seriam escritas. E está tudo bem. "Eu sou a única coisa que tenho forças para suportar."

Você estava certa quanto a sequência daquele filme, foi mesmo horrível e desnecessário. Você estava certa quanto ao sofá, a cama baixa, a cor das paredes, os dias de sol e os poemas de Poe.

Mas você errou. Você errou quanto aos dias de brigas e afirmações sobre as nossas vidas separadas. Errou os cálculos e previsões e calendários que são todos imprevisíveis quando você não está olhando.

Você disse que o tempo passa rápido e ele demora. Que eu ficaria bem e amor, desculpa dizer isso, mas sem
você eu tenho vontade de morrer todos os dias. Porque eu te dei tudo e não me sobrou nada. Porque o silêncio pode ser perturbador. É o vazio não é perda em si, mas a sua falta.

Eu nunca vou aceitar.

Um comentário:

  1. Não canso de ler o que você escreve, e reler todas as cartas e textos seus. Minha escritora preferida, sinto tanto sua falta...

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