Tudo me parecia cinza, esparso e também estranho. E o mesmo acontecia com os dias, com as músicas, com a sua face iluminada em um filme noir clássico e impecável. Também as estrelas, o céu sufocante e infinito, o amor que nos aprisiona debaixo das principais constelações, anjos e Beethoven à parte.
Eu via tudo isso e tudo isso me parecia cinza, eu pensava, isso também está dentro de mim, enquanto eu caminho soturno pelos bares e avenidas, respiro, transbordo cambaleante pela superficialidade das coisas.

sábado, fevereiro 4

Carta 3


Elizabeth,

Eu conheço essa sua angustia de estar no controle e saber sobre tudo. Você nunca gostou disso, eu te conheço melhor agora, mas há coisas que te faltam e que você também não sabe.

Henrique vai se casar. Meu melhor amigo vai se casar e só soube disso há um mês atrás, pelo convite de casamento e o pedido avulso dizendo que se eu não fosse o padrinho, ninguém mais seria. O mesmo chantagista de sempre. Achei o gesto bonito.

Ela se chama Sophia. Não é um nome ridículo? Todos os nomes ficaram ridículos depois de conhecer o seu. Porque ninguém é você. Ninguém nunca poderia ser você.

Eliza, porque isso mesmo? Porque ninguém pode ser você? Eu poderia me enganar e ser feliz por um ou dois meses. Quem sabe? Eu sou bom em fechar olhos.
Faltaria apenas seu olhar me contando em segredo, a mulher assustada que vive dentro de você e que pede mil vezes por socorro, mas não deixa ninguém entrar. Faltaria também seu humor inconfundível e orgulhoso, seus sorrisos escondidos de canto de boca. As suas marcas de sol, de pele e as que eu deixei ao longo dos anos. Aquele sinal em forma de gota que escorregava pelo seu ombro direito e prometia uma infinita queda. Sua necessidade triste de ter sempre algo nas mãos, para não sentir a grande falta e os dias que você queria dormir no chão frio porque sentia calor e gostava de se sentir sozinha.

Amor, eu tenho raiva. Meus pulsos se fecham sozinhos e eu tenho muita raiva. Porque Henrique, logo Henrique, que sempre chamou tudo de contrato, pode ter esse nosso plano, que fazíamos enquanto a noite ainda era madrugada?
Eu não esqueço daqueles dias em que o seu medo de solidão era menor do que qualquer golpe a sua individualidade. Você sussurrava entre os dentes, não sem hesitar, que me queria para sempre, que seu maior medo era ser esquecida e que talvez, aquele clichê de sobrado e jardins fosse mesmo felicidade. Casamento seria então a maior prova de amor. E eu te provaria mil vezes, todas de maneiras diferentes.

Meus dias são tristes. E eu tenho a impressão que me esqueci dentro de algum sonho seu.

Você tinha toda razão.

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