Tudo me parecia cinza, esparso e também estranho. E o mesmo acontecia com os dias, com as músicas, com a sua face iluminada em um filme noir clássico e impecável. Também as estrelas, o céu sufocante e infinito, o amor que nos aprisiona debaixo das principais constelações, anjos e Beethoven à parte.
Eu via tudo isso e tudo isso me parecia cinza, eu pensava, isso também está dentro de mim, enquanto eu caminho soturno pelos bares e avenidas, respiro, transbordo cambaleante pela superficialidade das coisas.

sábado, janeiro 7

No name city no meu carro antigo. E meu romance sem fim.

Fazia quase dois anos que já morava em hóteis, pousadas, móteis baratos de saídas de cidade e pequenos hóteis de hitchcook de beiras de estrada. Era bem verdade que não passava mais de uma semana em cada um desses lugares e que já tinha visto de tudo nessa vida: gente fodendo pela parede fina e o concreto saltando e tremendo a cabeceira da cama e os assoalhos quando eram de madeira, hóteis vazios e assombrados com passos no andar de cima e que o recepcionista parecia nunca ouvir ou se incomodar. Também ciganas gordas e estrábicas que queriam ler meu futuro por cinco dólares, depois dois dólares e mesmo assim quando eu rejeitava por cinquenta cents lançavam pragas e maldições.

- Que o céu caia sobre a sua cabeça sovina e mesquinha. Que caia mil vezes.
- Amém.
- Blasfêmia. Você vai direto para o inferno - e cuspiu bem no meu tênis nike velho e sujo.
- Minha senhora, o inferno é mais interessante que essa vida de merda. Se Deus quiser, ele me manda pra lá. - cuspiu outra vez e fez o sinal da cruz duas vezes falando uma lingua que na hora pareceu ser árabe.
Dessa vez eu ri e dei às costas mais uma vez às minhas chances de ter uma previsão boa para o meu futuro.

Esse era a minha deixa para a minha coragem regada a jaqueta preta de couro de La Paz e cigarro barato. Meu grande vá-se-foder para o todo meu passado de cicatrizes pela metade e descrenças de quem já viveu uma grande porrada de experiências. E eu escrevia sobre tudo isso.

O problema era que o mundo felizmente tinha ficado pequeno e eu tinha pisado em cada cidade dessa merda de mundo. Só quem chorava ainda eram os meus pneus que se despediam de cada lugar quando eu tinha enchido a cara e o saco do quarto, do recepcionista ou das mulheres e das putas.

O único escritor que nunca amaria ninguém ou coisa alguma. Era o meu segredo para o sucesso e ruína: pode anotar. E por tabela ninguém nunca me amaria também, o que não era grande coisa ou problema porque eu não sentia nada mesmo.
Aí vem na minha cabeça eu com seis anos, e os ouvidos que eu cravava na porta do meu quarto e a voz da minha mãe que chorava entre raiva e desgosto:
- Esse menino não é normal, Borges, não é normal. Ele tem um olhar esquisito, eu tenho medo dele. Eu não pari esse aí não.
- Não fala isso do garoto, porra, que ele pode escutar.
- Borges, ele foi trocado, só pode. É coisa ruim, coisa ruim. Eu tenho medo dele.

E tudo isso eu não sei dizer se realmente aconteceu ou se foi inventado porque eu nunca me senti pequeno ou criança. De uma noite para a outra eu tinha trinta anos e já rodava por aí. E não me lembro do nome da mulher que tinha me parido. E eu era mesmo esquisito e coisa ruim. Rejeitado e renegado que eu levava no sangue e no olhar esquisito.

O problema é que as vezes faltava dinheiro pra gasolina que eu resolvia em uma noite de sorte jogando cartas e roubando caixinhas de doações ou apostas de qualquer coisa rídicula.

- Nunca que você consegue comer cinco sanduíches desses. É impossível.
- Eu consigo, quer apostar?
- Quarenta pratas.
- Companheiro, cinco desse aqui.
- Se você conseguir é por conta da casa.

E todo mundo se reunia para assistir o cara magro de sessenta quilos e um metro e oitenta, ofegando até a última mordida de cada hamburger gigante que escorria a gordura por entre os cantos da boca e os dedos e braços. Saía com a barriga cheia e a grana de umas quinze pessoas burras e entediadas que se divertiam no fim de semana assistindo qualquer desgraça alheia. A minha delícia para o domingo em que a televisão do quarto só tinha pornô ruim, campeanatos de jogos antigos e reprises de filmes milenares.

-

Foi em Rock Street que apareceu Roberta querendo que eu me apaixonasse por ela. Me chamava de benzinho e passava os peitos na minha cara mergulhando aquele cabelo loiro na minha boca.

- Benzinho, porque você não fica aqui por mais tempo? Vai embora amanhã não. Você não tem lugar pra ir mesmo.
- Claro que tenho.
- Mas você disse que não tem nada te esperando ou algo importante.
- Já gastei a cidade.
- Já se cansou de mim, benzinho?
- Já.
- Você é um escroto filha da puta benzinho, sabia disso?
- Sabia.
- Eu gosto disso em você.
- Sei também.
- Um dia você vai escrever sobre mim, benzinho?
- Vou não.
- Porque não? Não me acha bonita?
- Acho.

 E ela começava a morder meu peito e passar o cabelo tingido na minha boca. Rodava a língua no céu da minha boca como querendo que eu rodasse junto e me apaixonasse milagrosamente pela garota mais bonita da cidade. Enquanto a gente fodia ela lamentava no meu ouvido "Todo mundo sempre se apaixona por mim, porque você não se apaixona por mim, benzinho? Você tem que me amar."
Meu pau ia ficando mole toda vez que ela dizia isso então eu apertava a sua garganta e ela chorava gemendo mais alto e a buceta ficava mais molhada e eu gozava.

- Você já pode ir embora.
- Puta que o pariu benzinho eu ainda nem gozei.
- Mas eu sim.
- Me diz pelo menos o teu nome.
- E vai fazer diferença?
- Vai. Pra eu colocar teu nome na fogueira ou coisa parecida.
- Coloca benzinho que o capeta vai saber que sou eu.
- Todo mundo sempre me ama. PORQUE VOCÊ NÃO ME AMA, CACETE?
- Porque você é uma frígida sem graça.
E isso era o suficiente pra ela sair empurrando a porta e ir gritando "desgraça" pelo corredor. Não sem antes voltar desdenhando meu pau e dizendo que também não sentia nada por mim.
- Eu também não te amo, sabia disso?
- Sabia.
- Você sabe de tudo, não é, escritorzinho fracassado?
- Também.

Aí ela se mandava e não voltava mais. Eu pagava a conta da diária com o dinheiro da carteira que ela sempre esquecia no chão, e eu desconfiava que era por querer.

Outra vez quando eu dizia por hábito o que eu era, queriam minha opinião sobre a guerra do Golfo ou o último best-seller que tinha ficado em primeiro lugar no New York Times.
- Não li.
- Mas é tão famoso.
- Não presta. Você só lê porcaria.
- Invejoso do caralho. Você nunca vai ser famoso ou sair na capa de jornal algum.
- Amém.

E o marido consolava a mulher dizendo que eu era um imbecil fracassado e não sabia de nada.
- O que foi que você disse pra minha mulher?
- Que ela é uma burra e só lê merda.
A última coisa que eu via era o anel marcado com São Jorge e a marca que ficava na minha cara quando eu encontrava com o chão do bar enquanto eu abria os braços e ele chutava a minha barriga e eu ria cuspindo o sangue de lado. Menos um dente que eu limpava na camisa e guardava no bolso. Me arrastava para o quarto do hotel e o dono me olhava desconfiado.

- Vagabundo não tem vez no meu motel não. Se arrumar confusão aqui te marco o outro olho.
Eu ria com as chaves na mão e subia as escadas.
- E amanhã quero você fora daqui seu engraçadinho de merda.

O ritual seguia comigo fumando o ar da Carolina do Norte e depois afundando o corpo quebrado na cadeira seca.

E eu escrevia sobre tudo isso também.

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