Tudo me parecia cinza, esparso e também estranho. E o mesmo acontecia com os dias, com as músicas, com a sua face iluminada em um filme noir clássico e impecável. Também as estrelas, o céu sufocante e infinito, o amor que nos aprisiona debaixo das principais constelações, anjos e Beethoven à parte.
Eu via tudo isso e tudo isso me parecia cinza, eu pensava, isso também está dentro de mim, enquanto eu caminho soturno pelos bares e avenidas, respiro, transbordo cambaleante pela superficialidade das coisas.

segunda-feira, dezembro 19

Nosso amor de apartamento.

Eu tenho medo John. Eu tenho medo porque nós não temos uma música só nossa. Sabe o quanto isso é grave? Nós nos esquivamos de conversamos ao pé da cama, fugimos do sol fechando sempre as janelas e por garantia as cortinas. Tenho medo porque não vamos ao cinema nos fins de semana e você não me chama de amor. Eu não mexo no teu cabelo e nem sei dos teus pesadelos mais terríveis. Me dói quando você fica uma semana sem dar uma notícia e eu sei que te machuco quando eu fujo no meio da madrugada sem deixar um bilhete. Nunca temos certeza se foi a última vez ou se voltaremos. Me mata saber que nós nunca teremos Paris John. Nós nunca tivemos lugar nenhum. Sempre foram hotéis baratos de páginas amarelas e fins de estrada. Onde você cresceu? Qual é o teu endereço? E se eu for uma maníaca depressiva com todo o potencial para me tornar uma psicopata? Me assusto com tudo que não sei, mas tenho ainda mais medo do que eu sei porque não tenho certeza se são verdades. Somos honestos? Qual é o teu sobrenome? Qual é a tua triste história que faria eu te abraçar por todas as noites querendo dividir toda a dor?

Eu não sei cozinhar. Quando era pequena queria ser pianista, tocar o mundo sem uma única letra de música. Mas meus dedos eram curtos demais. Olha como é o mundo: o tamanho dos teus dedos pode decidir toda a tua vida. Aliás, você já notou que eu canto em italiano? Minha família toda é da Sicília. Minha mãe fugiu, me arrastando para esse bairro da Lapa, quando eu tinha dez anos. Nunca quis voltar. Acho que nunca senti saudades na vida. Sou solitária demais John e não quero ser assim para sempre. É possível ser dois? Você parece ser muito individualista também. Tenho medo desse nosso desinteresse claro e apatia pela vida. Não passamos imunes. Sabe, eu gostei de ti por causa da tua sobrancelha. Parece bobeira, eu sei, mas deixa eu te contar que você estava naquela última mesa do bar, escolhida eu tenho certeza, porque era o único ponto onde a luz tocava de leve e deixava sombras. Então começou a tocar Johnny Cash. Uma hora da manhã, brandy no teu copo e neblina de fumaça por todos os cantos e ninguém ali entendia uma letra em inglês, tenho certeza. Mas tu levantou a sobrancelha quando John começou a cantar. Cry, cry, cry e eu vi alguém que entendia um pouco mais sobre o que era bonito. Eu quis você bem no meio daquela música. Precisei sorrir mais do que o habitual para você me notar. Desde então eu mesma colocava o disco que era pra você levantar um pouco mais a cabeça e dar aquele meio sorriso sacana. Você era a partir daqueles dias o meu John. E eu não precisava mais do que tu arrumando meu cabelo enquanto estava por cima de mim. Mas de dia enquanto eu rodava as chaves da porta de casa eu sentia que era mais uma invenção torpe minha, entende? Era um filme cansativo de Woody Allen onde as neuroses são profundas e eu seria a garota branca demais, cabelos pretos demais, massante, sensitiva, paranóica e que tinha nascido com a sina de ser solitária. E eu queria algo mais. Queria ser só uma vez Bette Davis ou então ter um papel de Scarlett O’Hara sendo agora alguém decidida e teimosa.

Sou coerente? Bem no meio de todo o meu vício de egoísmos, de ter minhas próprias coisas, meu próprio sobrenome e destino, eu quis dividir nesse único dia tudo contigo. Porque cansa ter tudo isso só para mim. É poder demais nas minhas mãos. Já imaginou o que eu posso fazer tendo todo esse controle sobre mim? Só aqui perto de casa tem uma ponte, milhares de pessoas mal intencionadas e madrugadas que eu posso decidir que eu simplesmente não me importo com nada. E eu não quero ser assim. Eu quero me importar, ser aquele tipo de pessoa que não dorme de preocupação e que espera por dias pelo telefone tocar. Eu quero ser alguém que espera.

Eu gosto tanto desse teu jeito profundo de fumar os teus cigarros. Eu reparo em todas as pessoas que passam pela calçada e nenhuma delas anda curvado igual a você que parece carregar todo o peso que foi encontrando pelo caminho. Ninguém nunca dormiu dentro de mim como você fez na última noite. Ninguém tem cicatrizes de histórias como você. Ninguém levanta a sobrancelha quando toca Johnny Cash. E me dói. Me dói porque não temos uma música, ou tardes de domingo pelo parque. Não temos nada e eu acordei hoje querendo um pouco mais, para não ser gananciosa e dizer que resolvi querer tudo.

Dá medo todo esse comprometimento? Te assusto quando tiro a roupa e solto os cabelos assim e sou toda essa honestidade? Não fecha as cortinas que hoje eu resolvi gostar do sol. Eu quero sentir tua falta. Eu quero ter um número para ligar em dia de chuva e dizer que hoje é impossível dormir sozinha. Que eu sou a pior garçonete da história e que odeio o cheiro doce de café e todas aquelas conversas blasés sobre Nietzsche e Sartre. Que quando você não está eu durmo escutando Beethoven no volume 33. Que a cama foi colocada estrategicamente ao lado da janela para eu vigiar a posição das estrelas. E que eu odeio amarelo. Não tenho nada no armário com essa cor. E queria saber, qual a tua cor favorita?

É clichê? É cafona? É preocupante toda essa minha vontade que pode sumir depois de uma semana, ouvindo alguém me chamar de sua? Assusta toda essas minhas transições de altos e baixos constantes de existencialismo? Mas tenho mais medo quando você não está: já notei isso. E eu tenho medo de escuro. Trauma de infância.

E acabei de pensar que talvez escrever cartas assim e querer todo o teu jeito antiquado e rude de anos 30 pode ser saudade. É que provavelmente temos tudo, o que falta é apenas a consciência disso. Compreende?

Quero dizer, talvez nossa música seja aquela que faz tua sobrancelha levantar e te compra um meio sorriso sacana. E nossa Paris seja dentro de mim em qualquer hotel barato no meio da madrugada. Eu não sei. Beethoven me toca demais sem uma única letra de música e fico assim toda sensível.
Só sei que é possível. É possível. E queria saber um pouco mais sobre você.

Um comentário:

  1. Não que eu tenha te lido por inteira, Ana. Mas do que li, este sem dúvida é o meu preferido. Incrível, um aperto no peito denuncia a minha preferência.

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