Tudo me parecia cinza, esparso e também estranho. E o mesmo acontecia com os dias, com as músicas, com a sua face iluminada em um filme noir clássico e impecável. Também as estrelas, o céu sufocante e infinito, o amor que nos aprisiona debaixo das principais constelações, anjos e Beethoven à parte.
Eu via tudo isso e tudo isso me parecia cinza, eu pensava, isso também está dentro de mim, enquanto eu caminho soturno pelos bares e avenidas, respiro, transbordo cambaleante pela superficialidade das coisas.

quarta-feira, dezembro 14

Carta 14

Paris,

Elizabeth, tenho todos os planos do mundo nas mãos. Isso deveria ser grande ou o suficiente para caber também nós dois e não funcionou. Por muito tempo fiquei deitado, sabe aquele jeito que a gente esquece o corpo e se afunda e fecha os olhos por reflexo e abre por puro instinto? Eu fui me perdendo enquanto tentava pensar em tudo e dessa forma eu não conseguia pensar em absolutamente nada, em qualquer razão, base ou sentimento. Quero dizer, eu consegui o grande feito, até então jurado por mim mil vezes impossível: me tornei frio, sujo e ao mesmo tempo passional. Frio porque o corpo formiga pela mesma posição de horas, de sonos, de inércia, porque depois de chorar por horas, por dias, por todas as dores e sofrimentos de filmes, de humanidade, por todos os abandonos eu nunca mais consegui chorar. Chorei nesta vida todas as redenções das outras vidas: porque eu vivo na espera das promessas de um mundo novo. E encontros, no caso, o nosso encontro. De ter outra chance, outros movimentos e eu ser mais compreensivo ou mais agressivo - ainda não decidi - e fazer dar certo. Sujo porque não tomo muito banho, ando devagar como se estivesse sempre me esquecendo um passo antes. Então eu tenho que voltar atrás, me empurrar, não sei com que forças Eliza, não sei. E a água corre e seus azulejos azuis, portugueses com toda a certeza, da casa de sua avó, igual a louça. Sujo porque o gosto na boca é o mesmo, porque a ânsia é mais forte, porque eu fui um infeliz naquela tarde de setembro. Sujo porque eu não valho nada e sou esse vagabundo que não sabe andar, comer, tomar banho, ser alguém, sem você. Passional porque de todas as faltas que são os verdadeiros vazios, e sei que agora sim eu te entendo, eu ainda te escrevo. Ainda chove, ainda me debato por dentro, ainda passo horas olhando suas pinturas e suspeito que morro pelos mesmos desesperos que você já sofreu.

Nosso único problema eram os signos. E você nunca soube andar, vivia correndo, contando os passos, prevendo os sinais de mapa e o que fazer em seguida. Sua mão e zodíaco sempre à disposição quando nosso futuro era incerto. Sempre deixando as marcas em que eu pisaria atrás, me protegendo das suas quedas inevitáveis.
Eu que agora piso e rasgo o peito e sinto todas as suas dores. T-o-d-a-s. De nada serviu nossos planos em trilhar e escapar do destino que havia tratado de marcar em brasa nossos sinais pela pele. Não tinha saída, tinha amor?
Nesta vida você ia passar seu batom. Ia chorar borrando as paredes de rímel. Ia rasgar as fotos, ia gritar engasgando com o choro. Ia escrever cartas para mim e passar sua angústia para o meu destino.
Em que vida teremos chance de sermos mais serenos? Em que vida teremos paz? Em que mundo ou dimensão teremos a oportunidade de não nos doermos tanto assim ou então doer, mas aprender a conviver com a dor? Quando não teremos de usar os escudos, quando poderemos fechar os olhos, quando seu peito terá outro canto, quando meus dedos cairão pesados em máquinas de ferro e tecerão outros lamentos. Não é passar imune, mas saber lidar um pouco melhor com a vida, meu grande amor.

Ainda me lembro das promessas e tento cumprir todas antes de te encontrar mais uma vez pela vida. Ainda me cuido daquele jeito despretensioso que você odiava e sou fiel a todas as conversas de madrugadas enquanto a gente fazia amor e analisava o último filme. Tudo-ao-mesmo-tempo. Ainda carrego o fardo de ser Luís e isso implica ser teu. O que foi difícil e o que continua sendo.

Não te culpo. Foi escolha minha. Uma das mais importantes, aliás.
Sinto falta do teu jeito leve à beira do Sena e como aqueles dias foram quentes. "Os dias mais bonitos de sol" você dizia.

Deixo o teto do nosso quarto e suas estrelas que caem uma a uma sobre o meu rosto degolando o seu céu quase sem brilho. Nossas paredes andam caladas, Eliza. Tão brancas e impenetráveis. Como isso é assustador e belo ao mesmo tempo.

Só volto às cartas que esse é o meu jeito de rezar. Ou a única forma que eu consigo de tocar seu rosto de sol que imagino no nosso próximo encontro. Mundo, céu e inferno ou o que tiver você e seu nome dentro.

Ainda te amo.

Luís.

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