Tudo me parecia cinza, esparso e também estranho. E o mesmo acontecia com os dias, com as músicas, com a sua face iluminada em um filme noir clássico e impecável. Também as estrelas, o céu sufocante e infinito, o amor que nos aprisiona debaixo das principais constelações, anjos e Beethoven à parte.
Eu via tudo isso e tudo isso me parecia cinza, eu pensava, isso também está dentro de mim, enquanto eu caminho soturno pelos bares e avenidas, respiro, transbordo cambaleante pela superficialidade das coisas.

terça-feira, novembro 1

O meu apocalipse

Primeiro começamos vendendo os livros: Borges, Hemingway e Lewis. No corredor da nossa casa havia uma caixa vazia de suco de uva, uma de papelão média que trouxemos da mudança e deixamos como aparador, depois como armário e agora como lixeira. Mais pela frente eu contei um, dois e três potes de iogurte vazio, um queijo pela metade encima de um pires de porcelana, na mesa de jantar, fora da geladeira. Não prestava mais.

O jornal de ontem, do mês passado no cantos da cozinha.

No banheiro, ele não tinha dado a descarga: de novo. No espelho, na parte superior, no canto esquerdo, uma lasca estava se soltando. O espelho lascado, descascava mostrando o fundo preto e pra poder ver o reflexo tive de apagar as duas últimas linhas, das frases que ele deixava pela casa todos os dias.  No vidro e pelas paredes, ele acabava com o meu batom rosa preferido.

Frases como  "Já dei duas voltas ao mundo, baby. Me perdoa?" ou "Little bird, a gente detona qualquer passado e apocalipse com o nosso amor eterno e imperdoável."
Pulei as roupas empilhadas no pé da cama. O lençol usado que me dóia trocar porque eu preferia o cheiro dele ao de amaciante. O cheiro dele que era uma mistura de colônia barata, suor, tabaco, pele e do meu cheiro.

Eu agarro o travesseiro. Na vitrola a agulha dança junto ao disco, se arranhando num vai-e-volta sem fim. Cartola chora ao fundo. Eu choro junto. A dor de sentir o mundo dentro do estômago: vazio.

Meu bem, só não podemos vender o Bandeira que nos ensinou a fazer poesia como quem morre.
Não teve jeito, ele foi logo em seguida. Junto com nossos discos de Beetohen, Bach, Amado Batista, Noel Rosa, Rolling Stones, mapa de Kerouac, os livros do velho bêbado e safado. Nossos contos de madrugada de Anais. Meus filmes de Godard, Anna Karina que passava pela porta de nossa casa me dando um último olhar triste e perdido. Fellini que tinha vergonha de estar na minha estante e não ter um video cassete para ser visto.

Nossos negativos que não valem nada e que mesmo assim eu escondo com medo. Leva minha jóias de família. Leva aquele colar que você me comprou também. Me leva da próxima vez junto contigo.

Você chegava as onze e meia. Um pouco antes de eu me atirar da janela. Um segundo talvez. Eu não sei, as vezes parecia que a cama ia ganhando forma, crescendo pra baixo, entrando no piso, na terra, no centro do mundo e eu ia me afundando junto ou caindo, não tenho certeza. Mas ele entrava pela porta um segundo antes da minha entrega.

Forçava a porta que emperrava um pouco antes de fechar. Girava a chave duas vezes, passava na cozinha e eu ouvia a faca que batia pesada no pires de porcelana. No mercy. Empurrava a porta do banheiro, ligava a torneira e mijava. Não dava descarga.

Pulava as roupas, pegava a lasca de madeira solta do chão e triturava o nosso paraíso. Me dava um beijo na boca antes, enchia a seringa, deixava mais um roxo no meu braço e afundávamos, agora juntos, dentro do colchão. Tudo bem eu me entregar junto dele. Tudo bem morrer ou quase-morrer sentindo a respiração dele quase parando dentra da minha boca. Tudo bem sentir o pau dele duro nas minhas costas. Tudo bem e tudo em paz quando a gente dormia no nirvana do nosso colchão. Nossa Paris, em plena rua Augusta em uma quarta do mês de outubro.

Sem os dias de pagamento no centro da cidade. Sem terno e bolsa pesada nos dias da semana. Sem carga horária, papéis para assinar, academia no domingo, três celulares e salário no fim do mês como agradinho, por rodar o engenho todo santo dia.

Ele repetia: se for preciso fugimos todo dia, dou mais duas voltas ao mundo e a gente fica longe de toda essa merda. Nós vamos viver uma vida de verdade, little bird. Uma vida de verdade. Um dia vão escrever sobre o nosso amor, sobre a nossa solidão a dois, sobre a nossa Paris no meio de São Paulo. Vão resgatar suas jóias, vão reler nossos diários a procura de pistas e segredos de como sobreviver a este mundo filho-da-puta. Nossas obras vão ser leiloados e o nosso amor vai ser representado em todos os palcos de teatro. E nunca vai haver um amor como o nosso e nunca vão entender o que a gente diz só com os olhos. É aí que tá a graça da vida, baby. A compreensão de todo o mistério. 

Era tão bonito: a boca dele se mexendo, o som ganhando voz, tomando forma, virando palavra na porta da boca. Tudo nele era bonito e verdadeiro. Fazia sentido. E nem precisava fazer. 
Mas fazia. 

Um comentário:

  1. Esse seu dom de se agarrar ao mundo inteiro, sentir, cair deslizando por entre os muros que se apertam faz com que quem lê sinta cada angústia, cada verdade... Faz ser possível brotar coisas que nem sabia da existência. Você faz doer sem adormecer. Você é maravilhosa, Ana.

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