Tudo me parecia cinza, esparso e também estranho. E o mesmo acontecia com os dias, com as músicas, com a sua face iluminada em um filme noir clássico e impecável. Também as estrelas, o céu sufocante e infinito, o amor que nos aprisiona debaixo das principais constelações, anjos e Beethoven à parte.
Eu via tudo isso e tudo isso me parecia cinza, eu pensava, isso também está dentro de mim, enquanto eu caminho soturno pelos bares e avenidas, respiro, transbordo cambaleante pela superficialidade das coisas.

segunda-feira, outubro 31

Bordamos a ferro quente a nossa sina de tecido.

As metáforas patéticas, repetitivas, maçantes que uso e que não alcaçam os nossos sonhos. Aquela mesma esquina que tomamos em madrugadas em que os dedos sagram a dor de dentro e que não cabem, que querem transbordar e sufocam em tudo que não pode ser escrito.
É como aquele bairro triste, solitário e escuro que a gente conheceu numa viagem curta do outro lado do mundo, no nosso automóvel público de mil janelas. Os únicos passageiros do transatlântico da minha cidade. É tudo vazio e assustador: tão bonito, tão bonito. Agarramos as mãos, laçamos as dores. Escondo o riso e faço questão de te mostrar atráves do meu jeito distante nos olhos, o susto de descoberta que é passar no meio do escuro do mundo ao teu lado.
O mundo fica grande de repente.
As mãos pequenas, os passos curtos, os papéis finitos, as canetas que somem e emperram. O céu que é distante, que é negro por vezes e engole até nossas estrelas de chão. Eu nunca escolhi o caminho mais fácil pra falar de amor.Eu dobro mais uma vez suas roupas e escondo a carteira de cigarro. Jogo fora teu whisky e fico esperando que você não sinta falta, que seja possível ficar bêbado de realidade pela minha presença. Tem tanta beleza do outro lado do muro e somos tão pequenos. Não tocamos o teto, não sabemos as preces, perdemos as orações ao longo dos anos, ao longo das dores, ao longo do tempo que nos cerca como gado e nos obriga a viver. E não sabemos lidar com a história. 
Eu subo encima da cama de um hotel barato, em uma avenida decadente perto do centro da cidade. Onde a noite pertence aos meninos de rua e eles são os únicos que ainda conseguem sonhar. Eu arranho teu lençol ao som de stones, finjo tanta coisa, tanta cena para te provar que o coração ainda bate errado. Eu também não aceito perder e faço vozes, me reinvento. Leio de tudo tentando ser mais interessante, mais esperta, mais crítica perto de você. E cresce no peito a fome, a necessidade, a ilusão dos meninos de areia, a vontade de ser letra, de ser poema, de virar livro, de ser mais inteligente, menos bomba-relógio, menos neurose de fim-de-noitinha em um domingo escuro e esparso. Cresce o frio, a chuva que me anoitece, a esperança de te dizer tudo que não pode ser dito. De te escrever tudo que ainda não disseram, tudo que ainda não foi pensado, tudo que não faz sentido e de repente faz, tudo que não é possível de ser escrito e pelo que morremos tentando inutilmente e de forma insuportável escrever, descrever, reescrever. 
Os calos nos dedos: somos mesmos os passageiros de vagões de trens. De malas feitas e dores e ausências. Faltas que nem teu peito que encosta no meu, nem teu coração que bate quando o meu descansa, nem quando nosso rosto se encontra e as bocas se falam... faltas que nem nosso sexo, nosso amor, nosso sossego não cobrem, não exilam, não preenchem. Ainda dói. Ainda não somos imunes. Ainda sentamos pretensiosamente e de falsa coragem em cadeiras secas e duras. Ainda batemos no ritmo de canções antigas, as letras que cravamos pela pele. Ainda costuramos com agulha e linha grossa o nosso passado e covardia. Ainda bordamos, agora graças a Deus, sem enfeites e lantejoulas. Ainda estampamos na cara o que não pode ser esquecido. O que martelamos na madeira à prego e fogo. Nossa sina de sentir tudo uma vez mais. Nosso destino de gritar os pesadelos de todo dia. O tecido que é grande, o bordado que é longo, complexo, delicado, que se estira pelos poros, que gruda em nossas veias e lateja, lateja. Eu já senti, eu ainda sinto: o coração pulsando, o sangue saltando, querendo ser escrito, querendo gritar o que ainda não foi dito e também o que já foi, mas que nunca se acalma. Porque ainda somos pequenos e a sina não se cumpriu. 
Minha coxa que é marcada com a mesmo sinal que meu pai ferra todo ano o gado novo. Minha marca que eu não escondo e quero mostrar, quero repartir com qualquer pessoa que entende o meu desespero. O chão batido, meus pés quentes, queimados, esfolados de andar em círculos. Nosso hotel e letreiro antigo que fica de costas e nos esconde em segredo. O varal coberto com prendedores feito pássaros azuis. Nenhuma roupa, nenhuma amor. Ainda somos de vagões, ainda sou ferrada e me cerco entre grades e gaiolas e currais. Ainda escapamos pelo teto branco do hotel barato que não tocamos e que fingimos ser o céu.
Queria mesmo deitar no asfalto da noite fria, naquela rua solitária e sem luz, esquecida e assustada como eu. Ganhar a rua feito Dora e Pedro Bala: nossos nomes em tempos de criança quando ainda não temos chances de sermos Bonnie and Clyde. Abraço seu livros, conto nossos dias de banco de praça com cachoeira no centro de tudo, com sinfonia de Beethoven e gente doida que não tem medo de gritar com voz de verdade. O mundo fica maior, você escreve como gato de cartola que desvia e sabe cair. Eu choro de um jeito piegas, com direito a lágrima rolando e tudo mais. Escrevo tentando ser grande, tentando te alcançar. Escrevo até sentir o suor deslizando e caindo pelo lábio que você escala feito montanha. Escrevo até sentir os calos, até chegar ao porto ou estação. Até encontrar você no caminho e segurar mais uma vez a tua mãos frias e pequenas.
O vazio que persiste e persistirá, mais que é medíocre e não ganha do mundo que cresce. O mundo que na verdade somos nós.

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