Tudo me parecia cinza, esparso e também estranho. E o mesmo acontecia com os dias, com as músicas, com a sua face iluminada em um filme noir clássico e impecável. Também as estrelas, o céu sufocante e infinito, o amor que nos aprisiona debaixo das principais constelações, anjos e Beethoven à parte.
Eu via tudo isso e tudo isso me parecia cinza, eu pensava, isso também está dentro de mim, enquanto eu caminho soturno pelos bares e avenidas, respiro, transbordo cambaleante pela superficialidade das coisas.

terça-feira, novembro 8

Caneta bic azul e mapa on the road

Eu levantei empurrando os lençóis, a coberta e o edredon, nessa sequência. Como se levantasse também do fundo do mar, como que acordando de um náufrago ou um sono de mil anos. Eu ia respirando mal e daquele meu jeito rápido, procurando pelo seu rosto, pela sua presença, pela minha calma. Você como sempre, tinha me deixado no meio da noite, indo fazer companhia à janela, ao cigarro, às luzes da cidade, a si mesmo. Eu não sei. Qualquer coisa que fosse um pouco distante de mim. Você jogava o cigarro pela janela, soprava a fumaça para o lado esquerdo e me beijava sorrindo ou sorria me beijando dizendo “tô aqui, baby”. Eu fazia bico e cruzava as pernas, querendo dizer que sua presença era meio ausente, cheio de faltas e isso doía, mas aí eu lembrava de quando eu te deixava no meio de uma frase, e fugia para o cinema mais próximo ou qualquer lugar que não tinha seu nome, e sabia que eu não era constante também. E não podia reclamar.

Você se divertia com a minha dor de não-posso-dizer-nada, porque eu não sou de deixar uma briga tão fácil assim. Então eu sofria. Você me colocava no colo e pedia perdão mesmo assim. Só para me ver deixando as correntes, só para ter o prazer de ver eu me desmanchando nos seus braços. E só assim eu te beijava.

Mas nesse dia, nesse dia quando eu te vi de costas para mim, fumando seu Hollywood na janela, eu me preocupava com o nosso mapa.

- Amor? O quê você tá procurando?

Eu fingia que não escutava e continuava procurando. Cuba ou Montevidéu? Hoje é domingo, certo? Eu não sei onde deixei aquele sobretudo preto, aliás, eu também não sei onde foi parar meu disco do Black Sabbath, que é fundamental para a nossa trilha.

- Ana? Pode me responder? O que você tá procurando?

O mapa dobrado em quatro. Amassado na América do Norte, por tantos dedos apontados, rotas de Kerouac mal planejadas, caneta bic color circulando os nossos estados favoritos e promessas de um futuro feitas enquanto a gente fazia amor, no chão da sala.

As nossas mãos que se encontravam e se abraçavam de uma forma lógica e máquinal, como de costume, como era de destino. Porque tinham nascido para se encontrarem, no meio do escuro, da frenesi, do caos, dos nossos ensaios de ser um só. Assim, também as nossas mãos se encontravam, tornando uma só. Todo o corpo se encaixava, prometendo um laço perfeito e irreparável. Que só era desfeito depois que o meu amor passava para teu peito, e o teu amor descansava no meu canto azul. Só assim, a gente suspirava calmo, só assim a gente dormia, no tapete mesmo, tendo a certeza que não nos perderíamos.

- Amor, arruma a tua mala.

Eu estendi o mapa encima da cama e mordi a tampa da caneta, circulei Cuba e Montevidéu.

- Você escolhe, amor.

Ele sorriu de lado, fechando um pouco o olho direito, um pouco pelo sol, um pouco pela mania e me deu um beijo, pegando a tampinha da caneta, direto da minha boca e mordeu também, tomou a caneta da minha mão e foi dirigindo o trajeto.

- A gente sai daqui de Sampa e para em Assunção.

Você ia riscando e furando nosso mapa em alguns pontos. Ligava as cidades em cinco segundos e eu fazia metáforas de distância e mapas e quilômetros reais. Mas tentava focar em você. Era difícil. Eu me perdia facilmente analisando minhas vontades, seus desejos, a vida que também era uma rota e que podia ser deixada de lado. “Eu escolho a inércia” ou “Eu quero seguir aqui, pela estrada da vida”…

-Ana? Depois de Assunção a gente desce até Santa fé, Rosario, até chegar em Buenos Aires. Ficamos umas duas semanas e depois Montevideu. Quero morar com você em Montevideu, amor. 

- Eu quero qualquer lugar que tiver uma estrada e nós dois.
- Eu quero qualquer lugar que tiver suas sardas, sua boca, seu cabelo que me mostra o mar, seu coração desritmado.. - e ia agarrando minhas coxas, beijando meu ombro e nos amávamos no chão novamente. Com medo do amor escapar pelo peito, pela respiração, pelo canto, pela urgência.

- Montevidéu, amor.
- Montevidéu.

- E as nossas malas?

- Sempre prontas.

- Eu te amo, baby.

- Eu te amo, amor.

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