Tudo me parecia cinza, esparso e também estranho. E o mesmo acontecia com os dias, com as músicas, com a sua face iluminada em um filme noir clássico e impecável. Também as estrelas, o céu sufocante e infinito, o amor que nos aprisiona debaixo das principais constelações, anjos e Beethoven à parte.
Eu via tudo isso e tudo isso me parecia cinza, eu pensava, isso também está dentro de mim, enquanto eu caminho soturno pelos bares e avenidas, respiro, transbordo cambaleante pela superficialidade das coisas.

sábado, julho 7

Quando eu te contei sobre os segredos da juventude

(e o primeiro ou único amor a que temos direito)


"Como eu posso te dizer? É difícil. Tudo é sempre muito difícil pra mim. E pra piorar eu sou pessimista, perdi a fé nos dias, as músicas entram dentro de mim, me perfuram, eu não sei,   sinto nas veias toda a tristeza como um aviso prévio de toda a confusão que virá. Porque ela sempre virá, você sabia disso, meu amor? Você já sentiu isso? Não interessa se acordei bem, se respiro normalmente ou se tive um sonho perverso na noite anterior, não importa o calendário, o rádio desligado encima da geladeira ou a porta que eu esqueço de trancar. As coisas simplesmente acontecem muito depressa e eu não tenho forças, ou até tenho mais não quero mover um só palmo para impedir que tudo isso aconteça. Eu acho que no fundo, eu não passo de uma expectadora, sabe? Da vida, das relações, dos sentidos apurados, dos amores que eu deixei passar. Acho que eu não quero ser feliz. É isso."

"O que te acomete é a suprema falta das ilusões. O que pode ser explicado também por Sartre na página 53 daquele livro que te falei, em relações interpessoais do capítulo quatro: As essências. Ou então por Freud, minha querida, digo: leia Lacan. Você notará também  explicações convincentes a cerca dos teus traumas antigos. Como quando você apanhava quando criança e hoje gosta de apanhar na cama."

"Uma palavra pra você, querido, Niet-zsche."

"Tudo bem. E o café?"

"Ficou amargo. Não vale a pena."

"Porque você acordou hoje tão mal humorada?"

"Sei lá, mistura de tpm com finzinho de domingo. Eu fico assim mesmo."

"Você já decidiu o vestido?"

"Já."

"Que horas?"

"Oito. Você vai chegar a tempo?"

"Eu já te decepcionei alguma vez?"

"Várias vezes.

"Quando?"

"Quando você não adivinha o que eu penso. Ou quando você dorme primeiro e eu fico sozinha, fico com
medo."

"Não é minha culpa. Você, às vezes, pode ser muito injusta."

"Eu sou exigente com tudo, você sabe disso. A vida também me exige em tudo. E além disso... O amor tinha que ser capaz de ler mentes, você não acha?"

"Eu não sei. Acho que sim."

"Eu quero dizer, como uma sinalização em que você teria a certeza de que há qualquer conexão ou sentimento. É terrível todo esse acaso, todos esses amores irrelevantes-indiferentes. A vida é tão curta . Porque todo o perigo, toda a atenção em alerta se eu posso ser feliz desde ontem?"

"E como você reconheceria as pessoas certas se não se encontra-se antes com todas as pessoas erradas?"

"Isso é piegas demais pro meu humor prejudicado, Luíz. Fica para a biblía ou para o sermão de hoje à noite no casamento."

"Que horas mesmo?"

"Oito."

Na igreja decorada de salmão e branco, rosas amareladas, espelhos no chão e vitrais coloridos, eu não reconheço ninguém. Apenas a noiva que também é funcionária do hotel cinco estrelas em que eu trabalho e que usava pérolas todos os dias.

"Como ela se chama mesmo?"

"Catarina."

"E ele?"

"Não lembro. Talvez seja Ricardo."

"Você acha que demora?"

"Acho sim. Porque agora, a esta altura do campeonato, toda essa aversão à casamentos? Seus pais são separados?"

"Nenhum trauma dessa vez. Apenas acho entediante toda essa formalidade e expectativa. É como marcar a primeira vez de uma garota em um final de semana livre e encher a cama de flores para descobrir depois que ela ainda não tem seios formados. Eu não gosto disso. O que aconteceu com as histórias em que as pessoas fugiam para se casarem escondidos?"

"Tá falando de Las Vegas?"

"Tô falando de espontâneidade. O mundo não tem mais isso ou nunca teve."

  Catarina seria a única que dançaria sozinha no meio do salão, como a estrela mais bonita da noite. Vestiria branco, eu imaginei, e provavelmente um colar de pérolas. Carregava as flores no colo, caminhava devagar como no ensaio do dia anterior, eu pensei. O que era realmente estranho é que ela não sorria. Não olhava para os lados como em outros casamentos. Olhava o chão, as flores, os detalhes do vestido, as mãos. Foi nessa época que eu devo ter compreendido também  sobre compaixão. Por trás de todo ser humano fodido, mesquinho e maldoso havia uma história triste. Eu sentia pena por todos eles, inclusive por mim.
  Quando Catarina chegou ao altar não olhou para Ricardo ou Carlos, não me lembro o nome, mas o fato é que ela não sorriu hora alguma. E isso hnão passou despercebido.

"Ela vai vomitar?"

"Acho mais fácil ela sair correndo."

"Isso é terrível. Eu quero chorar por ela."

"Você não pode ser tão sensível assim."

"Eu sou sensitiva. É diferente. E além do mais, você vê todo esse silêncio eminente? Isso é assustador. Parece que não há como voltar atrás, como não ter opções depois de rezar a Deus e pedir para morrer. Eu quero dizer, depois disso você acha que não tem outro jeito e que você realmente vai morrer a qualquer momento."

"Você acha que eles podem nos escutar?"

"Acho que tem sempre alguém prestando atenção."

"Sabia que eles se conheceram no mesmo dia que a gente?"

"Um ano, então."

"Sim, sim."

"Como ele a pediu em casamento?"

"Acho que foi no restaurante prefirido dela, no dia do aniversário dele."

"No champagne?"

"Na sobremesa."

"Teve aplausos?" Dessa vez ela riu.

"Aposto que sim."

"Parece alguma cena de uma série norteamericana antiga."

"Talvez seja por isso mesmo."

"Meus irmãos, estamos aqui para selar a união magnífica deste homem apaixonado pela belíssima Catarina Helena. O casamento é a forma mais rápida e eficiente de se aproximar de Deus e rever todos os conceitos pregados por Cristo. O amor, depois de todo o sofrimento ainda é o mais verdadeiro dos sentimentos quando o homem simplesmente percebe que não pode ser alguém se não tiver uma mulher ao lado."

"Em Lucas, versículo quinze, Deus vem nos dizer mais uma vez sobre a necessidade humana em ter uma companhia em noites de turbulência. Você Catarina, é quem vai segurar a mão de seu homem quando ele estiver em noites de turbulência. E para tudo isso é necessário a paciência trabalhada por todos os dias de nossas vidas. A concessão por sua vez é a mais importante das causas em que temos que trabalhar, como a chama da paixão que nunca pode deixar-se apagar..."

"Sabe, ainda há beleza nisso tudo."

"Talvez, querido. Acho que no fim, eu apenas não gosto de dar o braço a torcer."

"Você está muito bonita, hoje."

"Hoje."

"Você acha que a eternidade acaba em algum lugar?"

"Tem que acabar, não é mesmo?

"Eu penso assim: em algum lugar, haverá sempre alguma barreira."

"Mas isso também pode ser superado e depois disso pode haver mais duas eternidades, depois outros
muros, outras paradas. A eternidade da eternidade."

"A eternidade da eternidade. Bonito."

"A eternidade, meus filhos, está apenas ao lado de Deus. Por isso na instituição que será consagrada agora, estarão todas as promessas declaradas perante todos os juízes do céu e da terra. Estará também todo o comprometimento e amor laçados. Não pode haver arrependimento no casamento, meus queridos filhos. O que Deus une, nenhum homem é capaz de separar."

"Você reparou que ela não tirou o véu?"

"Reparei."

"Acha que ela está sendo obrigada?"

"Ela pode estar grávida também."

"E o pai obrigou?"

"Ou a consciência, não é mesmo? Ela não teve mãe. Sabe bem a importância disso tudo para a saúde de uma
criança."

"Psicologia barata, Luís. Perdi minha mãe aos oito anos e nem por isso me casaria por medo de barriga."

"Você é ariana, é diferente. Não faria nada que tivesse "obrigação" no meio de uma frase."

"Ele disse sim. Você acha que ela vai dizer também?"

"Catarina Helena de França, você aceita este homem, como seu legítimo esposo, enfrente a toda a sua família e perante Deus nosso Senhor, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença por todos os dias de sua vida?"

"Aceito."

"Então pelo poder concedido a mim, eu vos declaro marido e mulher. Podem aplaudir os recém-casados."

A igreja toda se levantou em lágrimas e assobios. Eu reconheci a sonata que tocou enquanto os noivos viraram-se para a platéia e pareceram segurar as mãos pela primeira vez.
Não haveria festa porque ela tinha optado por um transatlântico pelo Mediterrâneo. Ela usava as mesmas pérolas que usava todos os dias no Grand Hotel, eu pude perceber quando ela passou ao meu lado. O véu continuava abaixado, as flores à tiracolo, os sapatos brancos que apareciam a cada vez que o vestido dançava para trás e ela usava branco. Branco, eu pensei, só ela pode estar de branco. Isso definitivamente é alguma coisa.
Na saída, havia balões vermelhos por todos os lados, nos para-brisas, no retrovisor, em galhos de arvóres.  Ela não segurava minha mão. Eu me recordo também que houve fogos de artifício e que nós dois assistimos na esquina da igreja, dentro do primeiro carro que eu comprei. Tinha banco de couro, custou umas oitocentas pratas e nós ouvíamos músicas pelo toca-fitas. Eu era metido em filosofia e acordos federais, você tinha o cabelo grande, ruivo e era ariana. Eu não sabia ler mentes, você não consultava horóscopo, não acreditava em coincidências e tinha medo do pai. Eu tinha vinte e poucos, você também. Naquela noite houve confeitos, vestidos longos, uma transa rápida depois do banho e depois outras muitas análises sobre cada falta humana e nossas angustias, que eu ainda arrisco dizer que são as mesmas.
Catarina se separou seis meses depois. Incompatibilidade de gênios, ela alegou para o juíz. E o casamento não tinha sido consumado. O marido chorava, chorava envergonhado pedindo um pouco mais de tempo.
Que a reconquistaria. Que cumpriria seu papel de homem.

"Mas eu não te amo mais."

"Nunca me amou?"

"Amei."

"E quando parou de me amar."

"Quando eu me tornei sua. Quando eu me tornei sua e nunca fui sua realmente. Eu fiquei vagando por aí. Não era de ninguém. Eu não era ninguém depois disso."

Você me deixou quase na mesma época pelos quases mesmos motivos.

"A gente não lê a mente um do outro. Você sabe. E tem Paris, tem a Áustria, eu nunca vi um Munch de
perto."

"Qual vai ser o primeiro quadro?"

"O beijo."

"Por causa do azul?"

"Também. Mas ela não tem rosto. Já percebeu?"

"Não. Mas agora eu posso ver."

"O que você pode ver?"

"Tudo. Inclusive você."

"Às vezes eu esqueço que você também escreve."

"Como você pode esquecer isso?"

"Do mesmo jeito que você também esquece. Como agora eu finjo que esqueço. Eu me esforço muito em fingir que eu não sei. Mas eu sei. Eu sei durante quase todo o tempo. "
-

"Continuo bonita?"

"Mais do que antes."

"Isso é bom?"

"Acho que não para mim."

"Você me deseja sorte?"

"Sempre?"

"Como era aquela frase mesmo, querido?"

"A eternidade da eternidade."

"Isso. Ainda continua bonito."

"Algumas coisas sempre serão bonitas."

"Como eu?"

"Como você e suas sardas quando o sol vermelho reflete em seu rosto." Ela caminhou até a porta.

"Luís, eu queria ser Catarina também. Ela não tem rosto. Mas no altar, ela disse sim."

Fechou a porta. Eu fiquei pelo sofá lendo Miller, trópico de câncer, eu pensei em Março, quase perto de Abril, é áries. Duas horas depois um avião cortou o teto da minha casa.

2 comentários:

  1. PERFEITO. Por momentos pensei estar a ler um livro. Merece continuação. Lindo, envolvente e é daqueles textos que da vontade de imprimir para ler, reler e reler.

    http://sentimentosclandestinos.blogspot.com/

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