Tudo me parecia cinza, esparso e também estranho. E o mesmo acontecia com os dias, com as músicas, com a sua face iluminada em um filme noir clássico e impecável. Também as estrelas, o céu sufocante e infinito, o amor que nos aprisiona debaixo das principais constelações, anjos e Beethoven à parte.
Eu via tudo isso e tudo isso me parecia cinza, eu pensava, isso também está dentro de mim, enquanto eu caminho soturno pelos bares e avenidas, respiro, transbordo cambaleante pela superficialidade das coisas.

terça-feira, novembro 8

Bom dia, je t'aime

Não havia solidão no nosso quarto. Quando joguei fora nosso relógio de ouro que ficava na parede da sala, ele também se certificou de jogar cada pedaço de solidão que ficava entre a cama e nossos corpos. Ele vira a cabeça de lado, me sorri daquele jeito sacana e diz que nunca perdeu uma boa luta no ringue. E que mesmo de mãos atadas e sem nocautes consegue levar a briga a doze assaltos por pura diversão. E que não vence os doze, vence onze que também gosta de apanhar um pouco. Mas ganha sempre. E eu digo vencida e apaixonada que ele vence até quando perde.

- Tá querendo me agradar, baby?

Coloco Noel Rosa e ele tem certeza que sim. Mudo o tom de voz, só pra saber se ainda sou forte, se sou infalível, arranhando meu sotaque. Só para saber se ele ainda me ama. Ele me agarra a cintura e beija meu aparelho de menina e eu suspiro sabendo que sim, ainda me ama. Ainda não foi embora. Ainda temos nosso “para sempre” que dura um pouco mais do que a humanidade permite. Um pouco além do que é possível e racional.

Na nossa casa onde não existem horas, somos imortais. No domingo ele não me deixa levantar antes do sol abaixar. Ele puxa do fundo da casa meu quadro de escola, outros tempos e necessidades, escreve: amor, não se levanta.

Eu traio em segredo o juramento. Escovo os dentes, arrumo o cabelo bagunçando um pouco e finjo uma beleza natural. Deito na cama e ele chega me sorrindo com uma bandeija linda de prata e uma rosa vermelha num copo de cristal. Pi-e-gas.

- Tem croissants de chocolate e torradas, baby. Você precisa comer um pouco.

- Eu te amo.

Eu te amo era nosso obrigado, nosso por favor, nossas desculpas e bom dia. Era necessidade dizer a todo instante. Como se houvesse sentimento demais e tivéssemos que dividir, tirar um pouco do corpo, da mente, da alma que pesava demais com tanto amor.

-Je t’aime - Ele dizia e perguntava de novo como falava em russo, que ele anotava e perdia os papéis. Não conseguia lembrar.

Enquanto comia os croissants ainda quentes e eu não sabia comer, porque ele sempre tirava o chocolate dos cantos da minha boca, eu arranhava as unhas no braço do meu amor, lembrando da noite em que escrevi música no corpo dele. Ele não tomava banho direito há dias. As marcas da tinta começavam a borrar, mas ele insistia, pedia para passar por cima, contornar o M, o S baby, tá saindo. Escreve de novo.

Foi quando eu acordei de um pesadelo e chorei por um abraço. Ele chorou comigo. Então eu peguei minha caneta preta e escrevi “Miss you” no braço dele. E bom, é uma música grande dos Stones, tomou um pouco das costas também. E depois fizemos amor.

Depois ele pegou a caneta e desenhou embaixo do meu peito esquerdo um “L” encima da minha mancha rosa de nascida. Assim amor, ele dizia, nós nunca saberemos se é L de Luis ou de Luiza.

- Não pode ser dos dois?

-Pode. Pode que nos abrigamos em uma palavra só. Pode ser love também que é nosso sobrenome.

- Você sabe de tudo, não é?

- Não tudo, baby. Mas um pouco de tudo, eu sei.

Me mordia a coxa, declamava uma música brega como poesia, só para me tirar os olhares de lado e minha tristeza. Não me deixava sentir. Não suportava me ver sentir um pouco mais. Eu ria. Não conseguia conter seus braços que me escondia às duas da manhã. Sua boca que fazia parte da minha e colava ao corpo como peça fundamental.

Faltava-você-faltava-você. Eu confessava, quando sentia que era feliz. E ele dizia é-você-Luiza. É-você.

Nunca fomos tão bravos quanto Maio. Era frio. Era sábado e estávamos lendo. Eu de cabeça para baixo e com as pernas encima das pernas dele. Dava um beijo longo e conseguia qualquer promessa. Qualquer coisa que eu pedisse enquanto sussurrava dentro da sua boca, ele não era capaz de negar.

- Eu quero que você me pique.

- Amor…

- Você vai estar do meu lado.

Ele quis chorar por ser fraco quando não conseguia me dizer “não” nessas horas. Foi assim que ele entrou dentro de mim. Não disse nada, só meteu mais forte. Me lambeu a boca e abraçou meu rosto com força, beijando a testa, as sardas, o cabelo, a nuca. Nós sonhávamos juntos, ele agarrava a minha mão e pegávamos o mesmo caminho, chegando lá juntos. Sempre juntos, não é, amor?

Naquele dia ele amarrou com cuidado o elástico, deu um beijo na minha pele branca e me disse com aquela voz de dor “Je t’aime”. Encostou a agulha e segurou meu queixo, para não desviar o olhar. Enquanto ia enfiando a agulha, ele mergulhava os olhos mais fundo em mim e me beijava com força. E depois aquele prazer. Como se eu nunca tivesse gozado na vida. Como se nunca tivesse chorado ou sofrido na vida. E como se todo o resto não importasse.

Eu era ingênua, baby. Eu era criança e hoje eu renasço do teu lado. Ele amarrou rápido o elastico no antebraço e forçou seus músculos. Suas veias que saltavam para fora pedindo uma picada.

A gente fez amor de novo. Foi pra Pasárgada juntos e jurou morrer ao mesmo tempo.

-Nem um segundo na minha frente, amor.

-Nem um milésimo, baby.

Nossa escolha de morrermos jovens. Sacanear a morte e o destino e os grandes planos de Deus. A gente era invencível, imbatível. Eu era forte, eu sei, mas do lado dele eu me tornava grande. O medo da vida, da morte, do amor, de todas essas coisas profundas e insanas, eu perdia, do lado dele. E na nossa casa onde não temos horas, calendário ou horóscopo com luas em Saturno, nós conseguimos ser eternos.

Eternidade, amor. Tem coisa maior que isso?

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